Esta foi a casa onde vivi os primeiros anos de vida, em Alpiarça. Hoje já não existe, substituída por um prédio vulgaríssimo.
Vivíamos no andar de cima. Por baixo era a adega do senhorio - João Mateiro - que morava ali perto. O acesso da adega fazia-se pela porta mais larga e as uvas eram baldeadas das tinas transportadas em carroça para dentro do lagar através da janela ao lado. Na época das vindimas havia um cheiro intenso a uva pisada e a mosto.
Percebe-se o murete de uma pequena varanda no primeiro andar. Ali aprendi a reconhecer as pessoas que passavam na rua: o Zé Inácio com os passos incertos de antigo AVC que lhe tolhera parte do corpo; a dona Rosa e o marido carteiro, sr. Paulo; a vizinha Alzira, mulher do sr. João Mateiro; o "cabo" Romão, gordíssimo, de bengala e lento andar, com uma voz tão grossa que eu julgava que vinha do poço do quintal; a dona Arlete, dona da padaria ao lado, onde o Zé Capitão, sempre mascarado de poeira branca, passava os dias a peneirar farinha para dentro de uma grande tulha; a vizinha Augusta - que meu pai, por brincadeira, chamava de "vezusta Auguinha" - dona da ourivesaria Silva, no mercado municipal; o sr. António Lopes, sócio da loja de panos do nosso primo Eduardo Geraldes; os pais desse primo, dona Conceição e sr. Claudino, que tinha uma mercearia na rua Fontoura da Costa. E tantos outros...
Recordo Teixeira de Pascoaes:
"A memória é um museu, uma variedade imensa de estátuas e quadros; uns animados pela dor, outros, pela alegria. E todo luar que encanta a noite do Passado. Surgem, velados de uma ternura dolorida, que é uma névoa de lágrimas não choradas". (Livro de Memórias)