4.2.21

A PRIMEIRA CASA, EM ALPIARÇA


Esta foi a casa onde vivi os primeiros anos de vida, em Alpiarça. Hoje já não existe, substituída por um prédio vulgaríssimo.

Vivíamos no andar de cima. Por baixo era a adega do senhorio - João Mateiro - que morava ali perto. O acesso da adega fazia-se pela porta mais larga e as uvas eram baldeadas das tinas transportadas em carroça para dentro do lagar através da janela ao lado. Na época das vindimas havia um cheiro intenso a uva pisada e a mosto. 

Percebe-se o murete de uma pequena varanda no primeiro andar. Ali aprendi a reconhecer as pessoas que passavam na rua: o Zé Inácio com os passos incertos de antigo AVC que lhe tolhera parte do corpo; a dona Rosa e o marido carteiro, sr. Paulo; a vizinha Alzira, mulher do sr. João Mateiro; o "cabo" Romão, gordíssimo, de bengala e lento andar, com uma voz tão grossa que eu julgava que vinha do poço do quintal; a dona Arlete, dona da padaria ao lado, onde o Zé Capitão, sempre mascarado de poeira branca, passava os dias a peneirar farinha para dentro de uma grande tulha; a vizinha Augusta - que meu pai, por brincadeira, chamava de "vezusta Auguinha" - dona da ourivesaria Silva, no mercado municipal; o sr. António Lopes, sócio da loja de panos do nosso primo Eduardo Geraldes; os pais desse primo, dona Conceição e sr. Claudino, que tinha uma mercearia na rua Fontoura da Costa. E tantos outros...

Recordo Teixeira de Pascoaes:

"A memória é um museu, uma variedade imensa de estátuas e quadros; uns animados pela dor, outros, pela alegria. E todo luar que encanta a noite do Passado. Surgem, velados de uma ternura dolorida, que é uma névoa de lágrimas não choradas". (Livro de Memórias)

"CREIO NOS ANJOS QUE ANDAM PELO MUNDO"

                              

Os cometas irrompem dos confins do universo, iluminam a noite e seguem em direcção ao infinito.



Teu nome, teu disfarce, tua ausência


do círculo familiar, a tua viagem,


tua febre, tua recusa e anuência,


teu estar connosco e, entanto, à nossa margem.




Teu corpo, teu sentido, tua luta,


teus olhos fundos, teu perfil estranho,


teu quarto, teu refúgio, cela, gruta,


teu gado fugidio, teu amanho.




Teu riso inesperado, teu mistério,

teu sereno dormir, tua lembrança,


teu não acreditar no Quinto Império,




teu vivo exemplo, tua confiança,


teu sílex interior, teu rosto sério,


teu modo de ensinar-nos a esperança.


 

Daniel Filipe