30.4.10

OBRIGADO, FERNANDO FABIÃO


                                          TUDO O QUE NÃO VEJO


  Tudo o que não vejo
e é imune à devastação

tudo o que restitui ao coração
a disciplina do mundo ou a dádiva de um nome

tudo o que sobrevive ao olvido
ao fósforo queimado da memória

vem do mar.


Fernando Jorge Fabião mantém em dia um "serviço de abastecimento de palavras" ( expressão do grande Ruy Belo) que alimenta e ilumina os dias dos seus amigos.
Foi ele que escreveu na dedicatória do seu livro "NASCENTE DA SEDE":

" A poesia ajuda a viver. Salva os dias. Ilumina o olhar"

Foto Méon, Santa Cruz, 2010





29.4.10

ACABOU A FESTA... dizem eles.

Este texto foi tirado daqui. Porque diz tudo o que sinto, porque não diria melhor, porque está de acordo com a enorme revolta que vejo à minha volta.
O velho problema deste pobre país: as suas elites são gente sem escrúpulos.

Com a devida vénia:

«Acabou a festa?



Presumo que sem indisposições ou espelhos por perto, o senhor presidente do BCP, citado por um diário a propósito do estado do País, proclamou: "Acabou a festa". Aparte o carácter circense da frase, é pena que ninguém tenha perguntado o óbvio ao senhor Carlos Santos Ferreira: "Acabou a festa para quem?". E já agora: "Que festa?".
Entre gestores, banqueiros e alguns políticos de turno existe, pelos vistos, uma ideia generalizada: o português comum vive em permanente banquete, sempre acima das suas possibilidades, a armar em rico. Curiosa ideia esta que transforma a nova versão da sardinha para três num repasto de faisão. E ainda por cima, em permanência.


Devo ter andado muito distraído nos últimos tempos.
De facto, devem ser os gestores de grande porte, o "bloco central de interesses" e os bancos, coitadinhos, que têm levado o País por bons caminhos e sem turbulências. Eles cumprem, está bom de ver, a espinhosa missão de nos colocar nos eixos. E nós, os delinquentes, teimamos em sair fora dos trilhos. Fica-se assim a saber, por exemplo, que assuntos relacionados com negócios de sucatas, aeroportos, privatizações, BPP´s, BPN´s, PT´s e submarinos fazem parte de um modelo de gestão rigorosa e acima de qualquer suspeita. Nós, pelos vistos, é que abusamos do "filet-mignon" e estamos a prejudicar o País. Somos, no fundo, uma despesa social incomportável. E dispensáveis nos intervalos entre eleições.


Por este andar, a democracia também terá custos insuportáveis.


Já faltou mais.»

ESTAMOS NO MESMO BARCO???


Desenho de QUINO

Estamos?

Eu estou é farto, estamos fartos! - desta conversa do "temos de gastar menos", "temos de reduzir o défice", "temos de ganhar menos"...
Temos?
Estes políticos falam para quem?
Para os dois milhões de pobres que vivem entre nós?
Para os pensionistas de 300 € /mês?
Para os quase 600 mil desempregados?
Para os milhares de jovens licenciados a 900 € / mês?

E venha o famigerado PEC! E as medidas económicas para acalmar o desassossego da finança internacional! E o silêncio do povo para não perturbar o pacto de regime!

Farto! Fartos!

27.4.10

PRÉMIO DE FOTOGRAFIA




Paulo Pimenta, repórter-fotográfico do Público, venceu o Prémio Internacional de Fotojornalismo Estação/Imagem Mora.
As notícias podem ver-se AQUI e AQUI.

Paulo Pimenta tem um blogue onde podemos ver as suas magníficas fotos
Vale a pena.

26.4.10

26 de ABRIL DE 1937: GUERNICA

Cidade basca, símbolo do horror da Guerra Civil espanhola
Dia de mercado, quatro e meia da tarde. A Legião Condor, de Hitler, experimenta novas técnicas de bombardeamento sistemático sobre a cidade histórica basca, Guernica.
Foi um êxito. Durante quatro horas, vagas sucessivas de aviões Heinkel 111 despejaram bombas incendiárias sobre uma população indefesa.
Dois dias depois, as tropas de Franco entraram na cidade, acusando os nacionalistas bascos de terem incendiado a cidade, no que logo foi desmentido pelos pilotos alemães, que se gabaram do feito. A República popular caía, assim, aos golpes dos fascistas espanhóis, sempre apoiados por Hitler e por Salazar.



Ruínas de Guernica

"Guernica", de Pablo Picasso, foi a pintura ícone da minha geração. Não havia estudante que não tivesse uma pequena reprodução na parede do quarto.
Quando o vi, em 2008, no Museu Rainha Sofia, em Madrid, percebi a tremenda força que dele se desprende. Tal como eu, muitas pessoas olhavam em silêncio e choravam.



23.4.10

PARA O ANTÓNIO, QUE NUNCA MAIS...



SALMO

A vida
É o bago de uva
Macerado
Nos lagares do mundo
E aqui se diz
Para proveito dos que vivem
Que a dor
É vã
E o vinho
Breve.

Carlos de Oliveira


ELEGIA POR UM HOMEM BOM


António Cavaco está ao meio, camisola de riscas

Acabo de ler n' O "REGIÃO SUL" :

«António Cavaco Silva (...) faleceu ontem aos 62 anos de idade, após ter sido internado de emergência no dia anterior na unidade de cuidados paliativos do Hospital da Luz em Lisboa.
(...)
Recorde-se que a doença que ontem vitimou António Cavaco Silva, era de natureza neurodegenerativa progressiva, denominada "esclerose lateral amiotrófica", e foi-lhe diagnosticada aos 55 anos de idade.»


Nos acasos da vida, em 1977/78, fiz estágio pedagógico na Escola Mário Beirão, em Beja. Lá reencontrei um antigo colega de Universidade, o António Cavaco, que tinha o Curso de Engenharia mas estava a dar aulas de Matemática. A partir desse ano, o "Grupo de Beja" - como ficou conhecido o núcleo de estagiários que ali se tinham profissionalizado, vindos de todo o país - passou a juntar-se em convívio anual.

António Cavaco é o primeiro a partir. Nestes últimos tempos mal nos vimos, mas sabíamos todos onde estávamos.  Ele sabia qual a evolução da sua terrível doença e enfrentou-a com enorme coragem. E porque era um homem extraordinariamente bom, também na fase final da sua vida se empenhou na solidariedade com outros doentes, como se pode ver AQUI.
Ele está na foto com outros doentes e respectivos famíliares, por altura da última exposição, em Outubro de 2009, no próprio Hospital da Luz, em Lisboa.

Adeus António! Tu foste um dos homens que ajudam a tornar suportável o mundo em que vivemos.

22.4.10

CONTINUAMOS A REFLECTIR...



Dia Mundial da Terra: andamos há tanto tempo a reflectir e pouco adiantamos. Hoje obriguei-me a ler outra vez esta carta. Mais uma vez... mais uma vez...mais uma vez......

Carta do Chefe Índio Seattle (excertos)


Trechos da carta escrita, em 1854, pelo Chefe índio Seattle ao então Presidente dos EUA, Franklin Pierce, "o grande chefe branco de Washington", que pretendia comprar uma imensa faixa territorial de sua tribo prometendo em troca "uma reserva".

Como podereis vós comprar ou vender o céu, o calor, a terra? Se nós possuíssemos a frescura do ar, e a frescura da água, de que maneira poderia Vossa Excelência comprá-los? Cada pedaço dessa terra é sagrado para o meu povo. Cada espinho do pinheiro, cada rio murmurante, cada bruma nos bosques, cada clareira, cada zumbido de inseto é sagrado na lembrança e na vivência do meu povo.

A seiva que corre nas árvores lembra o meu povo. Nós somos uma parte da terra, e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande água, são nossos irmãos.

As rochas escarpadas, o aroma das pradarias, o ímpeto de nossos cavalos e o homem, todos são da mesma família.
Assim, o Grande Chefe de Washington, mandando dizer que quer comprar nossa terra, está pedindo demais a nós índios. Manda o Grande Chefe dizer que nos reservará lugares onde poderemos viver confortavelmente entre nós. Ele será nosso pai e nós, seus filhos.
Prometemos pensar na vossa idéia de comprar nossa terra. Mas não será fácil, pois essa terra para nós é sagrada. A água cintilante que corre nos riachos e rios não é só água, mas, também, o sangue de nossos ancestrais. Os rios são nossos irmãos.

Eles saciam nossa sede, levam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se nós vendermos nossa terra, vós deveis vos lembrar e ensinar vossos filhos que os rios são nossos irmãos e também vossos, e vós deveis doravante dar aos rios a ternura que mostrais para um irmão.

Sabemos que o homem branco não entende nossos costumes. Um pedaço de terra para ele é igual ao pedaço da terra vizinha, pois é um estranho que chega, às escuras, e se apossa da terra de que tem necessidade.

A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e uma vez conquistada, o homem branco vai mais longe. Seu apetite arrasará a terra e não deixará nela mais que um deserto.



Não sei, nossos costumes são diferentes dos vossos. A imagem de vossas cidades faz mal aos olhos do homem vermelho. Mas, isso talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e não entende.

Não há mais lugar calmo nas cidades do homem branco; a barulheira parece estourar os ouvidos. O índio prefere o doce assobio do vento lançando-se como uma flecha sobre o espelho de um lago, e o aroma do vento molhado pela chuva do dia ou perfumado pelo pinheiro.

O ar é precioso ao homem vermelho, pois todas as coisas participam do mesmo sopro - o animal, a árvore, o homem. Eles dividem todos o mesmo sopro. O homem branco parece não se lembrar do ar que respira. O vento, que deu ao nosso avô o primeiro fôlego, recebeu, também, seu último suspiro.

Pensaremos, portanto, na vossa oferta de comprar as nossas terras.
Mas, se decidirmos aceitá-la, eu porei uma condição: o homem branco deverá tratar os animais selvagens como irmãos. Vi mais de mil bisontes apodrecendo nos campos, abandonados pelo homem branco, que os abateu de um trem que passava.

O que é o homem sem os animais? Se os animais desaparecerem, o homem morrerá dentro de uma grande solidão.

Ensinai também a vossos filhos aquilo que ensinamos aos nossos: que a terra é nossa mãe. Dizei a eles que a respeitem, pois tudo o que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra. Seus homens cospem no chão, eles cospem sobre eles mesmos. Ao menos sabemos isto: a terra não é do homem; o homem pertence à terra. Todas as coisas são dependentes. Não foi o homem que teceu a teia de sua vida, ele não passa de um fio desta teia. Tudo o que ele fizer para esta teia, estará fazendo para si mesmo.

Há uma coisa que sabemos, e que o homem branco descobrirá, talvez um dia: é que nosso Deus é o mesmo Deus, e sua piedade é igual, para o homem vermelho e o homem branco. Esta terra lhe é preciosa, e danificá-la é acumular de desprezo seu Criador.

21.4.10

MARÉ DE FLORES


Nuno Júdice é um nome incontornável na poesia portuguesa contemporânea.
Ontem, ao postar aqui o poema algo estranho de David Mourão-Ferreira, encontrei outro, com o mesmo título, do Nuno Júdice. É por isso que um dos meus desportos favoritos é vagabundear pelos livros cá de casa...

FLOR

Conheço uma flor de pétalas brancas
quando a corto do caule, amarelas
se a ponho ao sol, vermelhas ao
metê-la no cálice que ela enfeita.

E uma flor que tem todas as cores
que eu quiser, mas só ela mas
dá, quando a roubo ao seu jardim,
e só para mim brilha e floresce.

Esta flor é única: não seca
nem morre, e alimenta-se do que
lhe digo, em segredo, neste canto.

Há flores que não precisam de terra
nem de sol para viver. A sua terra
é o poema, o seu sol o amor que as faz crescer.

Nuno Júdice, O Breve Sentimento do Eterno

RECADO VIOLETA PARA TI



A FLOR

Entre a erva dos nervos camuflada,
emboscada no túnel de uma veia,
a flor apenas rompe, deslumbrada,
quando o pinhal, à noite, se incendeia...

Virá a converter-se em depressão,
enfarte do miocárdio, ou embolia,
no dia em que se apague esse clarão
com que a sua presença se anuncia... ?

Mas numa artéria já sem movimento,
ou na erva dos nervos recolhida,
descobrirão a flor feita de vento
que em vida me deu morte e me deu vida...

Hão-de enterrar então a flor e o vaso.
E nunca ninguém mais alude ao caso.

David Mourão-Ferreira

17.4.10

PROBLEMA DE CIVILIZAÇÃO OU DE GERAÇÃO?

O meu jovem visitante João deixou um comentário ao post de ontem. Achei-o interessante e motivador de diálogo / resposta minha. Aqui ficam, um e outro. Pode ser que mais alguém queira participar...

Isto parece-me um problema geracional.

Que percentagem de portugueses tinha uma colecção razoável de livros em casa nos anos 50?
Infelizmente os livros vão desaparecer assim como praticamente desapareceu o vinil e vão ser substituídos por livros electrónicos (alguns possivelmente fazendo uso do papel).
Os jovens hoje em dia dominam a tecnologia, e o ensino (quer em casa quer na escola) praticamente não faz uso dessa tecnologia.
Problema de civilização? Não será tanto. Penso que é a evolução natural das coisas. O preço que pagamos por ter uma civilização cada vez mais evoluída.


Eu ainda gosto de estudar à maneira antiga mas é cada vez mais dificil. No meu portátil tenho milhares de artigos. Seria difícil pegar nessa quantidade de papel e ir estudar para uma esplanada. Para não falar da quantidade de papel que se poupa.
Hoje em dia com o portátil é muito, - mas mesmo muito! - mais prático: ele é artigos, livros, leitor de música, leitor de DVD, agenda, etc. etc. ...
Penso que seria um disparate obrigar as pessoas a estudarem à maneira antiga. Houve uma altura que as pessoas estudavam com tábuas de pedra, depois papel e agora ecrãs de computador.
O problema não está na forma como se aprende. Isso tem mudado ao longo da história e continuamos a aprender.
Penso que o primeiro passo para resolver o problema é aceitar com naturalidade que o paradigma muda. Esta situação deve-se ter repetido milhares de vezes ao longo da história com o avanço da tecnologia, da roda ao computador…
Foi difícil abandonar o vinil mas as coisas são mesmo assim… :)
João

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Sou sensível aos argumentos do João. Há muito que uso as novas tecnologias e estou à espera do e-book barato e prático que me permita armazenar melhor os livros e levá-los para onde quiser.

O problema não está no avanço tecnológico, de facto. Será, antes, um problema de competência individual para lidar com a informação, seja qual for o veículo em que ela repouse: um livro, uma revista impressa ou um ecrã de computador. E este problema tornou-se mais visível com a massificação do ensino, levando a que as universidades sejam frequentadas por toda a gente, independentemente da capacidade intelectual e da vontade de estudar.
Para além desta massificação, a outra novidade do nosso tempo – o problema geracional, de que fala o João! – é o excesso de informação e consequente dificuldade em seleccioná-la; é a rapidez e a generalização da transmissão de conhecimentos, e consequente capacidade para avaliar da sua oportunidade, pertinência e relevância.

Receio que a massificação do ensino e esta onda gigantesca de tecnologia informativa não signifiquem aumento proporcional da capacidade cultural e da consciência de cidadania.
E que essas características sociais continuem a ser pertença de elites, constituídas agora por aqueles que têm genuína vontade de estudar e capacidade para lidar de forma inteligente com a inovação tecnológica posta ao serviço da circulação intensiva do conhecimento.

Na realidade, sempre foi assim: as elites que caminham na vanguarda e as massas humanas dos que não querem ou não podem aceder a patamares superiores de consciência cívica.
A política é a expressão desta realidade. Se as elites estiverem ao serviço do resto da população, teremos sociedades evoluídas. Se, pelo contrário, só pensarem em si, teremos sociedades desequilibradas, onde campeia a desigualdade, a exploração e a injustiça.
(Um bom critério para avaliar um político pode ser este...)

UM PRODUTO REVOLUCIONÁRIO



Vem a propósito. Vale a pena ver/ouvir.

16.4.10

UM PROBLEMA DE CIVILIZAÇÃO ?


jornal I de ontem trazia duas páginas sobre as dificuldades no domínio da Língua Portuguesa pelos alunos universitários.

Uma breve citação:

«A incapacidade de usar a língua portuguesa de forma correcta é um "mal generalizado" entre os alunos de todos os anos, avisa Manuel Henrique Santana Castilho, docente da Escola Superior de Educação de Santarém. "São raros os que conseguem organizar um pensamento e escrevê-lo sem incorrecções", diz o professor que ensina Gestão Educacional aos futuros candidatos a professores do 3.° ano. Os erros vão muito além da ortografia e da gramática, conta Isabel Ferreira, que dá aulas de Física aos caloiros do Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa: "Na generalidade, escreve-se como se fala. Os alunos distorcem as palavras para permitir uma colagem entre a grafia e a fonética."»


Como se chegou aqui?
Há logo quem culpe o Governo. Ou os professores. Ou os pais. Ou todos.
A verdade é que este não é um problema específico de Portugal, passa-se um pouco por todo o mundo.
Sempre que vem a propósito pergunto aos jovens se têm televisão, computador e Playstation no quarto. A esmagadora maioria tem. E ligam-nos assim que chegam a casa.
O pouco que lêem é sincopado, intermitente, nos ecrans do computador. Tudo passa pelas imagens rápidas, sem tempo para a interiorização.

Problema de civilização, parece-me. A família e a escola não têm capacidade para limitarem este caudal tecnológico que tudo submerge.
Os professores defrontam-se diariamente com a incapacidade dos jovens em manterem níveis regulares de concentração. E os pais não sabem como obrigar os filhos a estudarem à maneira antiga: lendo, sublinhando, resumindo, fazendo esquemas, reproduzindo por outras palavras, sintetizando...

E ninguém tem soluções para isto.

14.4.10

VAI UM CAFEZINHO?





Elogiemos o café, hoje, que é o seu DIA MUNDIAL.
E que melhor elogio do que o texto de George Steiner? Bem sei que ele não fala do café/bebida... Mas o resto, que é o mais importante, está lá.



«A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».


O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia. É o clube dos espirituosos e a poste-restante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar, a que Stammtisch tomar lugar. Danton e Robespierre encontraram-se uma última vez no Procope. Quando as luzes se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurès foi assassinado num café. Num café de Genebra, Lenine escreveu o seu tratado sobre empiriocriticismo e jogou xadrez com Trotsky.

Note-se as diferenças ontológicas. Um pub inglês e um bar irlandês têm a sua própria aura e mitologias. O que seria da literatura irlandesa sem os bares de Dublin? Onde, a não existir o Museum Tavern, teria o Dr. Watson encontrado Sherlock Holmes? Mas estes estabelecimentos não são cafés. Não têm mesas de xadrez, não há jornais à disposição dos clientes, nos seus suportes próprios. Só muito recentemente o próprio café se tornou hábito público na Grã-Bretanha, e mantém o seu halo italiano. O bar americano desempenha um papel vital na literatura americana e em Eros, no carisma icónico de Scott Fitzgerald e Humphrey Bogart. A história do jazz é inseparável dele. Mas o bar americano é um santuário de luzes desmaiadas, muitas vezes de escuridão. Vibra com música, muitas vezes ensurdecedora. A sua sociologia e o seu tecido psicológico são permeados pela sexualidade, pela presença —desejada, sonhada ou real— de mulheres. Ninguém redige tomos fenomenológicos à mesa de um bar americano (cf. Sartre). As bebidas têm de ser renovadas, se o cliente quiser continuar a ser desejado. Há «seguranças» que expulsam os indesejáveis. Cada uma destas características define uma ética radicalmente diferente daquela do Café Central ou do Deux Magots ou do Florian. «Haverá mitologia enquanto existirem pedintes», declarou Walter Benjamin, um connaisseur apaixonado e peregrino de cafés. Enquanto existirem cafetarias, a «ideia de Europa» terá conteúdo.»

G. Stneiner, A Ideia de Europa, Gradiva, 2005

Imagens:
Fernando Pessoa, por Almada Negreiros;
Foto de Fernando Pessoa no Martinho da Arcada, com Costa Brochado

AGORA O CORPO É MAIS UM BARCO



Agora o corpo é mais um barco que se solta.
Nele navegam primeiro os olhos e os receios.
E só depois a polpa dos dedos, à deriva, que
é quem faz o sabor das ondas nesse mar.

Levamos-lhe uma luz que é como uma promessa:
uma pequena chama azul e inquieta que treme
dentro das mãos e faz a boca abrir-se para
a espera. E não sei o que longe da margem

ilumina depois os nossos gestos: talvez
apenas a pele prateada dos peixes, o fulgor
da lua sobre a água como um gomo cheio
a desafiar os lábios, os reflexos do frio
metal das âncoras sob o olhar das estrelas.

Repara como de repente ficou distante o cais
e o outro barco amarrado ao sono da noite.
Esquece-o para sempre. Agora, adormeçamos
simplesmente, docemente, em casas de sal.

Maria do Rosário Pedreira, A Casa e o Cheiro dos Livros
Gótica, Lx. 2002



Foto © Méon

11.4.10

CITAÇÃO A PROPÓSITO



Do ÍPSILON (Jornal PÚBLICO), 9 de Abril 2010:

«Percebemos agora a razão dessa obsessão da Igreja, dos bispos, dos padres, dos cardeais, com o pecado sexual. Eram eles que estavam obcecados com o sexo. Não nós.»
(John Banville, autor de "O Segredo de Christine").

Hoje é inimaginável o horror psicológico em que foram criados muitos jovens, obrigados a confessarem pecados sexuais, no chamado "sacramento da confissão". A qual exigia a descrição integral do pecado, conforme o respectivo Cânone:

“Cân. 960: A confissão individual e íntegra e a absolvição constituem o único modo ordinário, com o qual o fiel, consciente de pecado grave, se reconcilia com Deus e com a Igreja; somente a impossibilidade física ou moral escusa de tal confissão; neste caso, pode haver a reconciliação também por outros modos.”

Consultem-se os "livros de piedade", com os seus "exames de consciência", essa literatura tenebrosa de que "A Missão Abreviada" era o mais refinado exemplo.
Veja-se que mentalidade predominava nestes "pastores" de almas.
Não foi há muito tempo, sei do que falo. Como tantos outros, demorei décadas a libertar-me do "poder espiritual" deste homens elevados a mediadores de Deus. Homens, apenas. Vítimas e carrascos de gerações de crentes.

A propósito do escândalo dos padres pedófilos que têm vindo a ser divulgados ultimamente, já há quem fale no regresso do anti-clericalismo de outros tempos.
A verdade é que na própria Igreja já há muito que algumas vozes lúcidas vêm clamando contra a clericalização da vida eclesial.
Parece chegada a hora de a hierarquia católica regressar à humildade de Cristo, que nunca ouviu ninguém em confissão...

10.4.10

INAUGURANDO O DIA...

Com um abraço ao Cid, que me deseja bons fins-de-semana en forma de poemas.
Saravá!


Saudades de tudo!


Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede de volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo..."

Guimarães Rosa

9.4.10

IMAGENS DO MEU OLHAR - Nª SRª DE ABOBORIZ







Quem sai de Peniche em direcção a Óbidos, mais ou menos a meio do caminho - talvez uns quinze km adiante - encontra a aldeia de Amoreira com a sua Igreja Matriz dedicada a Nª Srª de Aboboriz.
Tem imponência, de mistura com um certo ar rústico que lhe vem da alpendrada assente em colunas de pedra. Como quase sempre, há uma lenda associada a este culto. Transcrevo-a de um sítio da Freguesia de Amoreira, concelho de Óbidos.

Conta a lenda que a construção da igreja de Aboboriz se deve à descoberta de uma imagem e Nossa Senhora no tronco carcomido de um loureiro por uma pastora que apascentava o seu rebanho na Veiga de Bobris e que o povo do lugar ao ter conhecimento do facto construiu uma ermida em homenagem à Virgem, passando a chamar ao local Senhora de Bobris que, com o passar dos anos se transformou em Aboboriz.

Diz ainda a tradição que a imagem encontrada era do tempo dos visigodos que, com receio da moirama que havia invadido a Península Ibérica em 711, e chegados à Lusitânia em 715, a destruíssem, a esconderam no local onde mais tarde seria encontrada. Era uma imagem em pedra com um metro de altura revelando grande imperfeição, mas de grande antiguidade. Representava a Senhora a dar o seio ao Menino Jesus. Esta imagem foi retirada do seu lugar e destruída durante a revolta de 14 de Maio de 1915. Foi substituída por outra, que em nada se assemelha, oferecida pelo lavrador Frederico Ferreira Pinto Basto, proprietário ao tempo da Quinta do Paúl, por casamento com a herdeira D. Emília Ferreira.

A festa em honra de Nossa Senhora de Aboboriz celebra-se no primeiro Domingo de Setembro, com missa solene, procissão e arraial popular na Praça Dr. Azeredo Perdigão.




A desfear o lugar encontra-se este "crime" de lesa-árvore!
O belo e magestoso plátano não foi podado, foi decapitado.
Como foi possível???

8.4.10

IMAGENS DO MEU OLHAR - BALEAL

Lugar único.


"Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia da terra portuguesa. Não passa duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros - mas esta rocha é uma ossada, saindo do mar azul a escorrer azul, e presa à terra por um fio de areia que nas marés mais viva chega a desaparecer."
(Raul Brandão, Os Pescadores)



"Há manhãs em que a poeira do mar se mistura à poeira azul do céu. Um hálito fresco e húmido, uma exalação viva e salgada, vem do largo e das profundezas - de toda essa copnstante agitação, que nos dá um sentimento de vida ilimitada."(Raul Brandão , Os Pescadores)



"Tem-se a impressão de estar sobre a proa dum navio ou envolvido  numa onda azul e transparente" (Raul Proença, Guia de Portugal)


Capela de Santo Estêvão

Fotos © Méon

5.4.10

MAS ELA CHEGOU! FINALMENTE!

"Primavera vai e volta sempre
mocidade vai e não volta mais..."


O sol no Parque da Várzea é a porta de entrada.
Tanto a chamámos, ela chegou. Finalmente.
PRIMAVERA!

3.4.10

QUANDO TENHO SAUDADES DA PRIMAVERA



Janela manuelina, em Santarém



Ponte D. Luís, atravessando o Tejo em Santarém. Foto nas Portas do Sol.


Aqui, no litoral oestino, a Primavera é sempre tardia porque as brisas marítimas abafam o calor que começa a sair da terra.
No Ribatejo é bem diferente.
Hoje, ao folhear imagens de arquivo, tive saudades daquele bafo que vem do chão e que se começa a sentir lá pelos fins de Março. Era quando eu - farto das calças de surrobeco quente -  pedia à minha mãe para vestir os calções de Verão.

Fotos © Méon

1.4.10


«Lembro-me do contacto com os lençóis, gelados como mortalhas, quando me introduzia neles com os meus sessenta por cento de esque¬leto, os meus trinta ou quarenta por cento de carne e os meus cinco por cento de pijama. Lembro-me da frieza das colheres e dos garfos até aquecerem com o contacto das mãos. Lembro-me da insensibilidade dos pés, que pareciam duas próteses de gelo colocadas no extremo das pernas. Lembro-me das frieiras, Santo Deus, que começavam a fazer comichão no meio de uma aula de Francês ou de Matemática, e lem-bro-me que se caíamos na tentação de nos coçar sentíamos um alívio imediato, mas logo a seguir respondiam ao estímulo multiplicando a sensação de prurido. Lembro-me que aprendi esta palavra, prurido, numa idade absurda, ao lê-la nos prospectos daqueles cremes que não serviam para nada. Lembro-me sobretudo que o frio não vinha de ne¬nhum lugar, pelo que também não havia maneira de o deter. Fazia parte da atmosfera, da vida, porque a condição da existência era a frieza como a da noite é a obscuridade. Estava frio o chão, o tecto, o corrimão das escadas, estavam frias as paredes, estava frio o colchão, estavam frios os ferros da cama, estava gelada a borda da retrete e a torneira do lavatório, com frequência estavam geladas as carícias. Aquele frio de então é o mesmo que hoje, apesar de aquecimento, espreita nalguns dias de Inverno e faz saltar pelos ares o registo da memória. Quando se teve frio em criança, ter-se-á frio o resto da vida.»

Escrever bem é saber usar as palavras certas em frases bem organizadas para transmitir alguma coisa,  de tal forma que ela pareça única no universo da vulgaridade.




Juan José Millás é um autor espanhol contemporâneo que escreve muito bem. Diz-se que a maior tentação de alguém que quer ser escritor é começar por contar a vidinha. Este livro podia ser o mau resultado dessa tentação mas não é. Porquê? Porque a voz que fala dentro da narrativa podia ser a minha. Apropriei-me da narração porque ela é convincente. De tal modo que é universal e não apena a vidinha de alguém. E o que a faz ser assim é porque está muito bem escrita.
O narrador diz em certa altura:

« Ele estava a experimentar um bisturi eléctrico num bife de vaca. Subitamente, disse-me: "Rapara, Juanjo, cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa". Compreendi que a escrita, tal como o bisturi do meu pai, cicatrizava as feridas no mesmo momento em que as abria e descobri por que motivo eu era escritor.»

Mais adiante:

«Concebo a escrita como um trabalho manual. Cada frase é um circuito eléctrico. Quando se dá ao interruptor, a frase tem de acender. Um circuito não precisa de ser belo, mas sim eficaz. A sua beleza reside na sua eficácia.»

Não é um livro sobre teorias da escrita. Estas frases vêm a propósito mas são casuais. O que fica é o relato eficaz de uma experiência de vida.

Este livro vai ser objecto de conversa em mais uma "5ª COM LIVROS", sessão da comunidade de leitores da Biblioteca Municipal de Torres Vedras, em 15 de Abril próximo. Para fazer parte desta comunidade basta aparecer. Nem é preciso ler  o livro antes.