Encanta-me o descritivismo minucioso desta prosa...
Começa assim:
« Em Lisboa ninguém dormiu. Acabaram os outeiros, as damas voltaram dentro a compor a pintura esmaecida ou esborratada, daqui a pouco regressarão à janela, outra vez gloriosas de carmim e alvaiade. O povo miúdo de brancos, pretos e mulatos de todas as cores, estes, aqueles e os outros, estende-se ao longo das ruas ainda turvas do primeiro amanhecer, só o Terreiro do Paço, aberto para o rio e para o céu, é azul nas sombras, e depois subitamente rubro do lado do paço e da igreja patriarcal, quando o sol rompe sobre as terras de além e desfaz a bruma com um sopro luminoso. É então que começa a sair a procissão. Vêm à frente as bandeiras dos ofícios da Casa dos Vinte e Quatro, primeiro que todas a dos carpinteiros, representando S. José, que desse ofício foi oficial, e as mais insígnias, grandes painéis, cada um com seu santo figurado, feitos de damasco brocado e com bordaduras de ouro, e tão excessivos de tamanho que são precisos quatro homens para sustentá-los, revezando-se com outros quatro, folgando ora uns ora outros, ainda bem que não está vento, é ao compasso da andadura que balouçam os cordões de ouro e seda, e as borlas do mesmo metal, suspensas das pontas refulgentes das varas. Atrás vem a imagem de S. Jorge, com todo o seu estado, os tambores a pé, os trombeteiros a cavalo, rufando uns, outros soprando, rataplã, rataplã, tataratará, tá, tatá, não assiste Baltasar no Terreiro do Paço, mas ouve as trombetas ao longe e arrepia--se como se estivesse no campo da batalha, a ver o inimigo disposto em linha de combate, atacam eles, atacamos nós, e então sente que a mão lhe dói, há quanto tempo lhe não doía, talvez seja porque hoje não colocou nem gancho nem espigão, o corpo tem destas e doutras lembranças e ilusões, Blimunda, se não fosses tu, quem teria eu à minha direita para cingir com este braço, és tu, aperto com a mão salva o teu ombro ou a tua cintura, posto que repare o povo por falta de costume de estarem assim homem e mulher. »
E assim conclui:
«Anda o Corpo de Deus passeando-se na cidade de Lisboa, sacrificado cordeiro, senhor dos exércitos, contradição insolúvel, sol de ouro, cristal e custódia derrubadora de cabeças, divindade devorada e até às fezes digerida, quem se espantará de ver-te carne e unha com estes habitantes, degolados carneiros, soldados sem armas próprias, ossadas brancas no deserto, comedores de si próprios comidos, por isso se rojam pelas ruas as mulheres e os homens, dão bofetadas nas suas e próximas caras, batem cavamente nos peitos e ilhargas, estendem as mãos às fímbrias que passam, aos brocados e às rendas, aos veludos e aos laços, às fitas, aos bordados, e às jóias, Pater noster que non estis in coelis.
Desce a tarde. No céu, luz subtilíssima, quase invisível, está o primeiro sinal da lua. Amanhã Blimunda terá os seus olhos, hoje é dia de cegueira.»