Perto de 30 000 papéis, dizem os estudiosos de Fernando Pessoa. Há anos que lá mexem e remexem, e aquilo parece não ter fundo.
Um estudioso brasileiro - José Paulo Cavalcanti Filho - apaixonou-se por Pessoa e andou 8 anos a esgaravatar. Mas não se ficou pela arca, quis saber mais. Por exemplo, quem era o tal Esteves da Tabacaria? E que tabacaria era essa? Que farmácia "A. Caeiro" existia na Almirante Reis que Pessoa refere ter visto de relance numa ocasião em que por lá passou? E Ofélia, terá Pessoa chegado aos finalmentes sexuais com ela? A que horas certas terá nascido o Poeta, 15H15? 15H20? - pediu o parecer "científico" do famoso astrólogo Paulo Cardoso, que o deu e certificou: foi às 15H22!
E as cartas que escreveu para Mário de Sá-Carneiro em Paris, onde estão? Terão sido enterradas com ele? Cavalcanti foi a Paris, revolveu os últimos testemunhos possíveis, teve esperança de uma possível inumação mas ficou a saber que de Sá-Carneiro já nada resta, nem a memória de onde estão os ossos.
O livro está cheio destas minudências que alimentam um certo espírito mórbido de leitores curiosos como eu.
É claro que os académicos e os grandes conhecedores da obra do Poeta não levam isto à paciência. Até os percebo, sobretudo quando denunciam alarvidades como essa de Cavalcanti defender que Pessoa teve, pelo menos, 207 heterónimos!
É uma questão sempre polémica: onde passa a fronteira entre a vida e a obra?
Cavalcanti defende que em Pessoa não há fronteira. Uma confunde-se com a outra.
Parece-me que a coisa é mais simples. Se tivermos como critério a ação e a repercussão social, o homem teve uma vida apagada, sem grandeza, egoísta, pequenina. Pessoa não tinha vontade, força de vontade - como ele mesmo reconhecia. Era abúlico, desorganizado, incapaz de uma ação persistente. A arca é a imagem dele: papéis a monte, mal alinhavados, muitos sem qualquer referência de data ou circunstância. Fez projetos, escreveu-os, mas não realizou nenhum. Teve ideias geniais mas foi incapaz de as concretizar. Os seus escritos teóricos são incompletos, começam bem mas ficam-se pelo esboço, à espera de melhores dias. Tudo isto se sabe há muito, já foi estudado e escrito, a começar pela biografia de Gaspar Simões.
O que parece novo no livro de Cavalcanti é a forma de abordagem. Assumidamente subjetiva, apaixonada, jogando com as palavras do próprio Fernando Pessoa para ir delineando um possível percurso biográfico. Há que ter isso em conta e descontar alguns delírios na formulação de hipóteses ousadas, é certo, como essa de ir à procura de provas da homossexualidade de Pessoa e concluir que ela existiu mas sem consumação carnal. Ora bem!
Como diz Teresa Rita Lopes: «Se deixassem este livro ser apenas aquilo que é, obra de um apaixonado colecionador de estórias, não aceitaria o pedido do Público para o criticar»
Os ecos da polémica troca de argumentos entre Cavalcanti e a pessoana Teresa Rita Lopes podem ser encontrados aqui:http://blog.umfernandopessoa.com/2012/05/critica-de-fernando-pessoa-uma-quase.html