Divirto-me a passear os olhos pelos livros que aqui temos, ao acaso e sem orientação prévia. Como se andasse em praça pública pejada de gente, aberto a chamamentos ou inesperados encontros.
Hoje topei com Augusto Gil. Velhinho mas ainda malandrote. Nem sempre escrevia ‘baladas de neve’ (batem leve, levemente / como quem chama por mim…), também se perdia por prosas macias ou versalhadas jocosas. Como esta que é um mimo de graça:
ARTº 1056 DO CÓDIGO CIVIL
Oiça, vizinha: o melhor
É combinarmos o modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.
Passo os meus dias a vê-la
Bordar ao pé da sacada.
Não me tiro da janela
Não leio, não faço nada...
O seu trabalho é mais brando,
Não lhe prende o pensamento,
Vai conversando, bordando
E acirrando o meu tormento...
O meu, não: abro um artigo
De lei, mas nunca o acabo,
Pois dou de cara consigo
E mando as leis ao diabo.
Ao diabo mando as leis
Com excepção dum artigo:
O mil e cinquenta e seis...
Quer conhecê-lo? Eu lho digo:
«Casamento é um contrato
Perpétuo». Este adjectivo
Transmuda o mais lindo pacto
Num trambolho repulsivo.
«Perpétuo!» Repare bem
Que artigo cheio de puas.
Ainda se não fosse além
Duma semana, ou de duas...
Olhe: tivesse eu mandato
De legislar e poria:
Casamento é um contrato
Duma hora — até um dia...
Mas não tenho. É pois melhor
Combinarmos algum modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.
Augusto Gil (1873 – 1929),
VERSOS, ed. Ulmeiro, Lx, 1981
VERSOS, ed. Ulmeiro, Lx, 1981
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