«Mar / Metade da minha alma é
feita de maresia»
Dias de vacilante Verão. Frente a Santa Cruz, o
Atlântico também vacila entre ser líquida e serena planície ou revolta ruidosa
de ondas indomáveis ao assalto da praia.
O mar e a maresia – parte da alma de
Sophia vai pairando em busca de poemas. Ela explicou: «Pensava que se
conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos(...) eu
conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.»
Repousam agora no Panteão Nacional os
restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andersen. Restos mortais. Os outros,
que ela nos deixou e não morrem, vivem no ar, no mar, na maresia. Vivem na
promessa de um poema:
«Quando eu
morrer voltarei para buscar
Os instantes
que não vivi junto do mar» | JMD
Foto: J. Moedas Duarte - St. Cruz, T. Vedras
MAR SONORO
Mar sonoro,
mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza
aumenta quando estamos sós
E tão fundo
intimamente a tua voz
Segue o mais
secreto bailar do meu sonho,
Que momentos
há em que suponho
Seres um
milagre criado só para mim.
MAR
I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para
os astros como um grito puro.
QUANDO
Foto da internet
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em
Abril passarão no pomar
Em que eu
tantas vezes passei,
Haverá
longos poentes sobre o mar,
Outros
amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo
brilho, a mesma festa,
Será o mesmo
jardim à minha porta,
E os cabelos
doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.
Foto J. Moedas Duarte - St. Cruz, T. Vedras
LUSITÂNIA
Os que
avançam de frente para o mar
E nele
enterram como uma aguda faca
A proa negra
dos seus barcos
Vivem de
pouco pão e de luar.
MEIO-DIA
Meio-dia- Um
canto da praia sem ninguém.
O sol no
alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu
de todo o deus deserto.
A luz cai
implacável como um castigo.
Não há
fantasmas nem almas,
E o mar
imenso solitário e antigo
Parece bater
palmas.
Espero
sempre por ti o dia inteiro,
Quando na
praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em
todas as coisas o agoiro
De uma
fantástica vinda.
MAR SONORO
Mar sonoro,
mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza
aumenta quando estamos sós
E tão fundo
intimamente a tua voz
Segue o mais
secreto bailar do meu sonho,
Que momentos
há em que eu suponho
Seres um
milagre criado só para mim.
Dia do mar
no ar, construído
Com sombras
de cavalos e de plumas.
Dia do mar
no meu quarto – cubo
Onde os meus
gestos sonâmbulos deslizam
Entre o
animal e a flor como medusas.
Dia do mar
no ar, dia alto
Onde os meus
gestos são gaivotas que se perdem
Rolando
sobre as ondas, sobre as nuvens.
Foto J. Moedas Duarte - Litoral de T. Vedras
PRAIA
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços.
Neste dia de
mar e nevoeiro
É tão próximo
o teu rosto.
São os
longos horizontes
Os ritmos
soltos dos ventos
E aquelas
aves
Que desde o
princípio das estações
Fizeram
ninhos e emigraram
Para que num
dia inverso tu as visses.
Aquelas aves
que tinham
Uma memória
eterna do teu rosto
E voam
sempre dentro do teu sonho
Como se o
teu olhar as sustentasse.
BARCOS
Dormem na
praia os barcos pescadores
Imóveis mas
abrindo
Os seus
olhos de estátua
E a curva do
seu bico
Rói a
solidão.
Iremos
juntos sozinhos pela areia
Embalados no
dia
Colhendo as
algas roxas e os corais
Que na praia
deixou a maré cheia.
As palavras
que disseres e que eu disser
Serão
somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo
desumanamente
Como vêm as
ondas com o vento.
O belo dia liso
como o linho
Interminável
será sem um defeito
Cheio de
imagens e conhecimento.
Os dias de
verão vastos como um reino
Cintilantes
de areia e maré lisa
Os quartos
apuram seu fresco de penumbra
Irmão do
lírio e da concha é nosso corpo
Tempo é de
repouso e festa
O instante é
completo como um fruto
Irmão do
universo é nosso corpo
O destino
torna-se próximo e legível
Enquanto no
terraço fitamos
[O alto enigma failiar dos astros
Que em sua
imóvel mobilidade nos conduzem
Como se em
tudo aflorasse eternidade
Justa é a
forma do nosso corpo
De novo o
som o ressoar o mar
De novo o
embalo do tumulto mais antigo
E a
inteireza de instante primitivo
De novo o
canto o murmurar o mar
Que se
repete intacto e sacral
De novo o
limpo e nu clamor primordial
(Poemas de Sophia, OBRA POÉTICA, Ed. Caminho, Alfragide, 2010)
Foto J. Moedas Duarte - Litoral de T. Vedras
FALANDO DE SOPHIA
SOPHIA NO PANTEÃO - “Em
declarações ao Diário de Notícias, Maria Andresen, filha da poeta, mostrou-se
céptica em relação a esta trasladação: "Retiraram
a poesia da minha mãe dos currículos escolares para lá colocarem poetas
menores, considero mesmo que há uma tentativa subterrânea para a obliterarem.
Ainda recentemente um poeta português foi galardoado com o prémio Rainha Sofia
e não houve por parte dos media uma única referência ao facto de a minha mãe
ter sido a primeira portuguesa e a primeira mulher a recebê-lo..." (DN
2/07/2014)
POÉTICA - Um eixo
semântico atravessa a poética de Sophia de Mello Breyner Andresen: o do enlace,
súbito ou repetidamente buscado, com o «inicial» e o «primeiro». Poema a poema
somos remetidos para o «limpo», o «intacto», o «inteiro», o «puro». A poesia é
aqui dicção , peremptória do original, assombro perante a solenidade com que o
visível refulge (ou pode ainda refulgir), justo e sem pregas, susceptível de
descoberta. Esse é o seu ethos.( José
Tolentino Mendonça. In: Evocação de
Sophia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009)
O RESTO É INDIFERENTE
- Uma das últimas entrevistas a Sophia de Mello Breyner Andresen, se não mesmo
a última, apareceu numa pequena publicação católica chamada "Cidade
Nova". As perguntas eram telegráficas, mas completamente centradas na
ética da existência (tão cara a Sophia). E eram perguntas do tipo: «Se tivesse
a força para mudar qualquer coisa, o que mudaria?»; «De que tem medo nesta
vida?»; «Tem uma obra muito extensa, isso significa que foi muito feliz?»; «Que
considera mais importante na vida?». As respostas de Sophia têm o impacto e a
clareza definitiva que se espera de um testamento, que é, no fundo, o que
aquela entrevista constitui. Quando Joaci Oliveira, o entrevistador, lhe pergunta:
«Que gostaria de ver realizado em Portugal neste novo século?», a poeta dá uma
resposta veemente, que deveríamos acolher como um legado (político, poético,
civilizacional): «Gostaria que se realizasse a justiça social, a diminuição das
diferenças entre ricos e pobres. Mais justiça para os pobres e menos ambições
para os ricos. O resto é-me indiferente».(José Toentino Mendonça, Expresso,
25.1.2014)
ÉTICA RADICAL - «Devemos
a Sophia a nitidez da dicção, o paganismo visionário, um ímpeto de ética radical,
o sentido trágico da existência (não isento de religiosidade), um genuíno
empenho nas causas sociais e o espontâneo convívio das coisas e dos seres»
(Eduardo Pitta – Aula de poesia.
Lisboa: Quetzal editores, 2010)
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Os textos e alguns destes poemas fazem parte da página LUGAR ONDE, semanário BADALADAS, de Torres Vedras, publicada por mim em 18 /07/2014,
4 comentários:
Obrigada por este post tão cheio de luz sobre a poeta portuguesa que tinha no mar sua fonte de inspiração.
Belos poemas, preciosas fotos.
Viva, Lis!
Obrigado pela visita.
Bj
Obrigado ao Moedas por ter trazido para aqui esta linda história de Sophia e os seus lindos poemas. Joaquim Cosme
Grande abraço, amigo homónimo "Joaquim".
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