31.3.09

O PAPÃO

" O papão" - Gravura de Gustave Doré


As crianças têm medo à noite, às horas mortas,
Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas,
Para as levar no bolso ou no capuz dum frade.
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens medo ao bárbaro papão,
Que ruge pela boca enorme do trovão,
Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos têm escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!

(Guerra Junqueiro, A Velhice do Padre Eterno)


É uma característica atávica de uma parte da sociedade portuguesa: a reverência subserviente perante os detentores de Poder. Tem origem, talvez, nas muitas gerações que foram educadas na confusão entre poder temporal e poder espiritual. Eclesiásticos e aristocratas alimentavam esta mistura, que convinha aos dois estratos sociais e mantinha o povo de joelhos, amedrontado perante os castigos temporais na Terra e o castigo eterno no Além.
E isto é tanto assim que ainda hoje uma parte significativa da "dita" mensagem de Fátima radica no medo: três pobres e inocentes crianças da serra d'Aire foram confrontadas com uma visão terrífica do inferno. E o que poderia ter sido um episódio de superstição datado do início do século XX foi sancionado pelos Papas que erigiram Fàtima como prolongamento da Revelação Divina, ao arrepio da própria doutrina tradicional da Igreja que considera a Revelação concluída com os últimos textos do Novo Testamento.
Mantém-se, pois, extremamente actual o poema de Guerra Junqueiro. E todo o livro, aliás, que constitui uma poderosa denúncia de todos os bonzos, que fazem do medo o pedestal do seu poder.

6 comentários:

Unknown disse...

Méon,

e de repente lembro a lenga-lenga:

"Vai-te embora ó papão de cima desse telhado/ deixa dormir o menino um soninho descansado."

Quantas vezes adormeci ao som da voz que a sussurrava...

Beijinho.

Azul disse...

Muito a propósito vem também o seu texto, no despropósito do que se vive actualmente, a respeito da Crise de que se fala! É o medo o poder de hoje, que acalenta a demissão passiva dos povos - por maioria de razão (quero crer que não!)o nosso, que continua fiel a Fátima!

Muito interessante. Um abraço. Até breve. Azul.

JC disse...

Ora meu caro, antes de mais quero agradecer a sua visita ao meu remediado estabelecimento. Devo dizer também que ouvido um olé, fico logo hirto e disposto a achar que tudo é mais serio do que porventura me acho capaz. Gostei do Rodar e do Onde.

Maria Faia disse...

Interessante análise das palavras de Guerra Junqueiro Amigo Méon.
Os medos cresceram com todos nós pela infância - eram os medos do dito "inferno", como mar de chamas onde os "maus" acabariam por entrar.
Hoje vemos que aqueles que advogam tais teorias se esqueceram de dizer que o inferno mora cá, neste mundo em que vivemos, através das guerras, das invejas, do mal dizer etc...
Por isso, como diz, e bem, concordo em definitivo com a actualidade das palavras do nosso querido poeta e escritor Guerra Junqueiro.

Um abraço Amigo,

Maria Faia

Clotilde S. disse...

Méon,

Na verdade,foi nesta confusão entre religião, respeito e medo que a maioria de nós cresceu e foi educada.
Óptimo post, parabéns!

Bom fim de semana!

Bjo

Clotilde

Luna disse...

O medo o maior inimigo de qualquer caminho escolhido
Bj