29.1.10
NAS BERLENGAS, COM RAUL BRANDÃO
Li Raul Brandão pela primeira vez num manual de Língua Portuguesa. O texto, do livro "Os Pescadores", era a célebre descrição do encontro do narrador com o faroleiro da Berlenga.
Sempre que o releio renovo a primeira e inesquecível impressão: a poderosa sugestão visual das palavras, o contra-ponto de duas visões opostas, o faroleiro em duas ou três pinceladas incisivas...
Não resisto a deixá-lo aqui.
O FAROLEIRO DAS BERLENGAS
Se houvesse justiça no planeta, eu já tinha sido nomeado vereador deste castelo, onde vivem três veteranos que de velhos criaram musgo — ou pelo menos faroleiro. Como sou um contemplativo, o lugar convinha-me perfeitamente. Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado De Inverno nenhum barco atraca às Berlengas. Só e Deus no mais belo sítio da costa portuguesa!... Atrevo-me a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que está metido no farol, de costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os metais reluzentes.
— Hein?...
— Hum!...
Rosna e não diz palavra que se entenda.
— Olá!
Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:
— Que beleza, han?!...
Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pa¬no fora, encara-me de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança cheio de cólera:
— Que beleza o quê? Que beleza?... Isto?! — E ri-se. — O vento e o mar! Sempre o vento e o mar! O vento, que no Inverno não me deixa chegar à porta, e o mar todo o dia, toda a noite a bramir! O mar desesperado, o vento desesperado... Eu não sou um faroleiro — sou um náufrago. Que beleza, hein?... Nem posso dormir! Nem dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaçando submergir esta ilha do diabo!...
Julguei-me autorizado a interrompê-lo:
— Mas no Verão é esplêndido...
- Nem olho. Só me resta uma esperança — fugir. Se não me mudam, endoideço. O amigo sabe quantos endoideceram já? Três!...
E atirando os braços para o ar:
— Uma calamidade! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca! Nem a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma abóbora... Os coelhos devoram tudo. É uma praga!
— Dê-lhes tiros.
— Tiros?! — E ri-se com dois dentes e desprezo. - Quando quero um coelho, ato um anzol a um pau, meto o pau na lura e tiro o coelho para fora; quando quero um peixe, ato um anzol a uma linha e deito a linha à água... Mas o que eu quero é fugir! Fugir! Fugir para muito longe, para onde não ouça o mar, para onde não veja o mar!
Roncou... Percebi que repetia com escárnio: — Que beleza, han!... — E voltando-se, outra vez com o pano na mão, continuou a esfregar e a polir com desespero os metais — de costas viradas para o mar...
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3 comentários:
Méon,
e uma página imensa...onde vamos descobrindo um outro Raul Brandão!!!!
Uma excelente sugestão de leitura!!!!
Mais uma partilha!!!!
Beijinho.
Oi Méon ,
É mesmo pra nao rsistir!com a sua licença vou copiar pro meu arquivo porque é de uma beleza ímpar as palavras de Raul Brandão , um contemplativo como eu ! Bem ele diz" os homens devem ser felizes diante deste espetáculo sempre igual e sempre renovado.."
Penso que temos obrigação de sermos felizes, nao?
Obrigada por compartilhar com leituras assim,arrebatadoras.
abrços
Joaquim,
Prazer descobrir mais e mais teu blog, encanta-me.
Fico sentida porque não conhecí as ruinas do convento de Penafirme, já que estive tão perto. Tudo tão bonito....
Raul Brandão, fascinante, atual, nao o conhecia:
"Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr-do-sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário"
Abraços de além mar
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