Foto José D. R. Neca, in: OLHARES fotografias online, 24-12-2008
Gastas, tão gastas, as palavras. Quantas vezes só o silêncio exprime um sentimento que não (nos) cabe em palavras!
Tropeço no texto de Raul Brandão "O SILÊNCIO E O LUME", escrito em Dezembro de 1924, inserto no Vol II das suas "Memórias". As longas noites de Inverno, diante do lume, com Maria Angelina, a mulher amada.
Fico em silêncio. Ah!
«Cada vez me aproximo mais de ti. O que há de puro em mim a ti o devo. És limpidez e ternura.
Eu exagero sempre a dor, tu nunca te queixas. Andas nas pontas dos pés. Mal respiras — e estás sempre presente. Tens uma capacidade para a dor que eu não possuo.
Tudo em ti se faz naturalmente, tão naturalmente que nin¬guém dá por isso. A tua bondade não é um esforço. E é-te tão fácil partilhar a desgraça e as penas dos que se aproximam de ti!... Ninguém te vê e fazes-te sentir em toda a casa. Aquece--la. Estás em toda a parte, e ao mesmo tempo a meu lado. És como o ar que respiro.
Qual é a fonte escondida da tua vida, só o sei agora. Nunca pensas em ti — pensas sempre nos outros, ocupada num de¬ver a cumprir, não como dever, mas como instintiva com-preensão da Vida.
Já uma vez te propus matarmo-nos ambos, para penetrar¬mos mais depressa noutro mundo que adivinho esplêndido. Matarmo-nos não por horror à vida, mas por amor à vida. A outra vida maior. E não só por isso —: para ver a tua alma na sua completa nudez.»
(in: MEMÓRIAS, Tomo II)
"Maria Angelina e Raul Brandão", quadro de Columbano
«Nas caladas noites de Inverno, quando despego o olhar dos papéis, encontro sempre os teus olhos que me envolvem de ternura. Isto é quase nada — e revolve o mundo. E saudade, e a vida que passa e a morte que se aproxima, enquanto o tronco arde no lume, o pinheiro estala ou o carvalho amorroa. De fora vem o hálito da floresta e das águas. Mais silêncio... Surpreendo-te então a repetir o meu pensamento, ou é o teu que me acode ao mesmo tempo. Não fales! Outra figura trans¬parece atrás da tua figura. Nesse momento até o lume parece encantado e ficas tão linda que antevejo a vida misteriosa que me fascina e deslumbra. Isto só dura um segundo. Mas basta às vezes que sorrias e é a tua alma que sorri, basta às vezes que não fales e é a tua alma que me fala! Nesse momento somos um ser: eu sou tu, tu és eu; tu sorris, eu sorrio... Então cai sobre nós o silêncio — e eu descubro o que só nos é dado ver depois da morte, a amplidão das almas, seu poder magnético e, num deslumbramento, ao lado da existência pueril, a imensidade do universo e o infinito que nos rodeia e de que perdemos a sensação pelo hábito. A casa, que tem raízes de granito, voga no éter arrastada num turbilhão que me mete medo... Alguém nos vai bater à porta... Alguém se aproxima pouco e pouco num cerco que se aperta e em passos tão leves que mal se ouvem... Rodeia-nos o silêncio vivo, alma do mundo, o silêncio que é talvez o que eu mais amo na aldeia, este silêncio perfumado que envolve a nossa casa na solidão tremenda da noite: mais perto de mim arfa alguma coisa de religioso e profundo: — sinto a Vida e a Morte. Sinto-as enquanto a última brasa se apaga e as tuas mãos se agarram às minhas mãos de velho.»
(in: MEMÓRIAS, TOMO II)
4 comentários:
Méon,
e as palavras alcançam a infinita dimensão...a mais próxima de todas. A única. A da partilha!
Lendo Raul Brandão percebemos que a Vida pode trazer dádivas tão intensas...
Beijinho.
Oi Méon
Gosto do texto que me prende e me faz sair do chão.Assim , durando mais que um segundo. E as palavrras gastas, mas tocantes e o silencio exprimindo sentimentos . Adorei,Méon .
Vou procurar ler mais Raul Brandão, ótima dica.
meus abraços de retorno aos blogs.
Uma boa dica para uma próxima leitura...obrigada
Bjs
Fortíssimo texto de um enorme escritor. Depois dos retratos dos Pobres que tão bem soube fazer, é nas suas Memórias que o compreendemos na sua filosofia pessimista de tanto o aproxima de Miguel de Unamuno. Estudá-los em conjunto deveria ser uma tarefa já realizada.
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