30.10.10

LIVROS DA MINHA VIDA


O primeiro livro "à séria" que inaugurou a minha biblioteca foi este, uma versão juvenil do "Moby Dick", de Herman Melville, uma edição da Editorial Dois Continentes, Lisboa, 1955.

Foi o primeiro livro "grande" que li, em versão adaptada aos meus extasiados onze anos. Mais tarde, perante o romance com­pleto, verifiquei que o encanta­mento redobrava. Porque a dimensão da narrativa contém uma riqueza inesgotável: per­sonagens, situações, conflitos, comentários, emoções, tudo se vai desenrolando numa lingua­gem solta e bem humorada, por vezes irónica, outras vezes terna, quase sempre rigorosa e objectiva.
"Moby Dick" conta a história de Ahab, capitão do navio baleeiro Pequod, e da sua fatal obsessão de se vingar da grande baleia branca que um dia lhe arrancou uma perna. Coxeando na prótese de marfim, Ahab per­sonifica a teimosia das grandes missões, que arrastam atrás de si os aventureiros e os esfomea­dos. Buscam uns a côdea dura do sustento, outros a salvação para um quotidiano sem gran­deza. Ahab prega uma moeda de ouro no mastro grande, prémio aos que o ajudarem na luta contra o terrível monstro. Ao leitor é concedido um lugar no navio, onde terá por guia o jovem Ismael, testemunha que sobreviveu para con­tar. Com ele participará na longa viagem pelos oceanos em busca da baleia branca, esse monstro indomável que Ahab jurou vencer e que muitos interpretam como símbolo de todos os demónios que assolam a humanidade.

Para além da narração de aventuras, este livro é também um fresco riquíssimo sobre o universo dos baleeiros, o ambiente marítimo nos grandes veleiros do século XIX, a mistura de raças e etnias, de crenças e costumes, documentada na descrição dos personagens provenientes dos mais diversos lugares, onde se encontram também os baleeiros açorianos da colónia portuguesa de uma cidade portuária do litoral Leste americano.

Um mundo, este livro. Como bem diz o mais conhecido crítico norte-americano, Harold Bloom:

“Venero a epopeia de Melville desde criança, admiro nela o seu ardor extraordinário enquanto narrativa.
«Moby Dick» é o paradigma ficcional do sublime americano, de uma história que tem lugar nas alturas ou nos abismos, mas que é sempre profunda. É um livro extremamente original, sendo, ao mesmo tempo, o nosso livro de Jonas e o nosso livro de Job. Os dois textos bíbli­cos são explicitamente citados por Melville. O padre Mapple prega o seu maravilhoso sermão usando Jonas como texto e o epílogo de Ismael tem por epígrafe a fór­mula usada pelos quatro mensageiros para relatar a Job a destruição da sua família e dos seus bens terrenos: "E só eu escapei para to contar".

O grande Jorge Luís Borges também falou dele:

“No livro de Herman Melville, página a página, o relato aumenta até usurpar o tamanho do cosmos: a princípio o leitor pode supor que o seu tema é a vida miserável dos arpoadores de baleias; depois, que o tema é a loucura do capitão Ahab, ávido de perseguir e destruir a baleia bran­ca, depois que a baleia e Ahab e a perseguição que per­corre os oceanos do planeta são símbolos e espelhos do Universo".


É assim o célebre primeiro parágrafo de H. Melville:

« Chamem-me Ismael. Há alguns anos, quantos ao certo, não importa, com pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e sem nada de especial que me interessasse em terra, veio-me à ideia meter-me num navio e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que eu te­nho de afugentar a melancolia e regularizar a circu­lação. Sempre que na minha boca se desenha um es­gar carrancudo; sempre que me vai na alma um Novembro húmido e cinzento, sempre que dou comi­go a deter-me involuntariamente em frente das agên­cias funerárias ou a engrossar o séquito de todos os funerais com que me deparo; e, especialmente, sem­pre que me sinto invadido por um estado de espírito de tal maneira mórbido, que só os sólidos princípios morais me impedem de descer à rua com a ideia de­liberada de arrancar metodicamente os chapéus a to­dos os transeuntes, nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio. Catão lança-se sobre a espada com um floreado filosófico; eu, cal­mamente, embarco. Nada há de surpreendente nisto. Embora não se dêem conta, tal como eu, quase todos os homens acalentam, mais tarde ou mais cedo, este desejo de mar.»

(Edição do jornal Público, Junho de 2004, trad. de Lúcia do Carmo Cabrita Harris)

1 comentário:

Cláudia Tomazi - Brasil disse...

Interessante Meon, seu aspecto de recordação. Livros é sempre bom lembrar, de onde vem nossa força e generosidade. Leitura no povo!