17.2.11

A LER BREVEMENTE


O blogue BIBLIOTECÁRIO DE BABEL, do jornalista José Mário Silva, tem-me dado belíssimas sugestões de leitura. Este fica já na calha do próximo a ler, pela actualidade e pelo contexto em que surge. Urgente, este repensar o futuro por parte das esquerdas.

Ressenção critica, publicada também no suplemento ACTUAL, do semanário Expresso:



Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos


Autor: Tony Judt
Título original: Ill Fares the Land
Tradução: Marcelo Felix
Editora: Edições 70
N.º de páginas: 219
ISBN: 978-972-44-1632-8
Ano de publicação: 2010


Quando morreu a 6 de Agosto de 2010, aos 62 anos, o britânico Tony Judt foi lembrado como um dos mais importantes historiadores do nosso tempo (o seu livro Pós-Guerra, sobre a História da Europa desde 1945, tornou-se uma referência absoluta) e como um intelectual alinhado com a Esquerda americana, mas de uma independência intelectual a toda a prova. Depois de ter ficado a saber, em 2008, que sofria de esclerose lateral amiotrófica, uma doença neurodegenerativa, Judt aproveitou o pouco tempo que lhe restava para manter uma actividade muito intensa, como professor da Universidade de Nova Iorque, colaborador regular da New York Review of Books e ensaísta. Nos últimos meses de vida, já paralisado do pescoço para baixo, ainda teve energia para ditar, parágrafo a parágrafo, este derradeiro livro, uma espécie de testamento político dirigido aos «jovens dos dois lados do Atlântico», mas que deve ser lido por toda a gente que se reconheça na sua primeira frase: «Há algo de profundamente errado na maneira como hoje vivemos».

Ainda a sentir as ondas de choque provocadas pelo «pequeno crash de 2008» e consequente crise financeira global, Judt defende que «não podemos continuar a viver assim». Isto é, não podemos assistir impávidos ao desastre em curso, corolário das últimas três décadas de egoísmo materialista, culto da privatização, dogma do mercado livre e desdém pelas funções sociais do Estado. Depois da hecatombe em Wall Street, o capitalismo mostrou mais uma vez as suas fragilidades e o modo como se pode transformar no «pior inimigo de si mesmo», quando deixado à solta (ou seja, sem regulação digna desse nome). Mas saber que algo está mal não basta. É preciso reagir. Com indignação. Com fúria. Com lucidez. Com clareza ideológica. Por isso, este é um livro que toma partido e explica porquê. Um «guia para os perplexos», sucinto, directo e muito bem articulado.

Para Judt, o principal problema está na incapacidade da esquerda para conceber e discutir alternativas ao actual estado do mundo. Ainda aturdida pelo «contra-ataque reaccionário» das últimas décadas, revela uma tremenda «incapacidade discursiva», como se já não soubesse como falar dos problemas. Para ser de novo levada a sério, à esquerda impõe-se «alguma humildade» e a urgência de «encontrar uma voz», deixando de lado o «exibicionismo retórico irresponsável». Em vez de jogar à defesa, cabe-lhe evocar um património de conquistas importantíssimas, muitas das quais foram entretanto dadas como adquiridas: «Precisamos de pedir menos desculpas pelas insuficiências passadas e falar mais afirmativamente das realizações». Até porque a social-democracia de matriz europeia, defendida com unhas e dentes por Judt, pode não representar o futuro ideal, mas ainda assim «é melhor do que tudo o resto».

Na verdade, ninguém pode tentar compreender a situação dos nossos dias sem olhar para a experiência do século XX. Sobretudo para o que se passou após a II Guerra Mundial. Findo um longo cortejo de tragédias, assistiu-se então a um dos períodos mais prósperos da História da humanidade. Durante trinta anos, o consenso keynesiano (forte intervenção do Estado, aposta da despesa pública, impostos progressivos, regulação dos mercados) correspondeu a um progresso económico e social sem paralelo. Judt tem noção de que nem tudo foi perfeito (veja-se o caso do planeamento urbanístico) e que a sustentabilidade do Estado-providência, com a inversão das pirâmides etárias, se tornou bastante problemática, mas em seu entender é no regresso a esta concepção de uma sociedade que se organiza para o «benefício comum» que podemos discernir uma saída. E se a crise actual voltou a tornar evidente a necessidade do Estado, o que importa agora é repensá-lo e adequá-lo às novas circunstâncias.

A prioridade maior, porém, deve ser o combate à desigualdade, esse fosso imenso entre ricos e pobres que não parou de aumentar desde a última mudança de paradigma, nos anos 80, com o triunfo das ideias da escola de Chicago (fé cega no individualismo, culto da privatização), aplicadas tanto por Thatcher e Reagan como pelos seus sucessivos herdeiros. O resultado, defende Judt, foi um esvaziamento da sociedade, reduzida «a uma fina membrana de interacções entre indivíduos privados» que se preocupam apenas com os seus interesses. «E logo que deixamos de valorizar o público sobre o privado, com o tempo viremos decerto a ter dificuldade em perceber porque deveríamos valorizar a lei (o bem público por excelência) em relação à força.» Esta diluição do empenho cívico e da consciência do que são as necessidades comuns leva à desmobilização política, ao défice democrático e à perda de coesão social. Uma realidade que Judt denuncia, antes de deixar um repto que é uma piscadela de olho a Marx: «Há uma observação famosa de que até aqui os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo.»

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