«É impossível explicar como isto aconteceu mas, por alguma razão, não a reconheci. Mais tarde, pensei se haveria, na verdade, alguma espécie de estranho engenho dentro da cabeça de um homem que o impedisse, a partir de certa altura em que já nada espera, quando aprendeu a aceitar a derrota, de conseguir reconhecer aquilo sem que lhe parecera, em tempos, que não podia viver. Ansiamos por esse momento de felicidade; ele surge como uma queda de água no meio de um deserto; e, de repente, não acreditamos nele, por estarmos tão acostumados à sua irrevogável ausência.
Camila largou o gato no chão, saltou do sofá e, correndo para mim, de olhos brilhantes, abraçou-me com tanta força que, durante um instante, deixei de conseguir respirar. E ali estava o seu perfume, a sensação familiar do seu corpo, a memória da sua presença regressando com a suavidade de uma vaga nocturna, a sensação de um corpo iluminado por dentro. Abri os olhos, que não me lembrava de ter fechado, e, reparando mas ignorando que as pessoas no sofá nos observavam, foquei o rosto de Camila, o espanto reflectido nos seus olhos enormes.
«Como é que estás aqui? Es mesmo tu?», perguntou, baixinho. O cabelo castanho crescera-lhe, caindo agora abaixo dos ombros; o corpo amadurecera, os seios mais presentes, os ombros mais largos. Tinha brilhantes espalhados pela face, iludindo as sardas, e usava maquilhagem nas maçãs-do-rosto.
«Sou eu», respondi, sem saber o que dizer.
Ela olhou para trás, na direcção dos dois rapazes gémeos que haviam interrompido o seu jogo de cartas, e, depois, agarrando-me pela mão, fez-me sinal com a cabeça para sairmos dali. Nesse instante, porém, senti um braço forte em redor dos ombros. Voltei-me, surpreendido, e vi o rosto gorduroso do homem que me abrira a porta espraiado num sorriso de dentes amarelos.»
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