Túmulos da igreja de s. marcos [ s. silvestre - coimbra ]
(Foto (C) Méon)
A morte
é uma exagerada
Nuno Ramos de Almeida
Quando tinha
sete anos descobri a morte. Percebi que havia uma espécie de parede
inultrapassável e um tempo eterno sem nós. O céu e as nuvens que até ali me
tinham parecido coloridos esmagavam-me. Até o silêncio se tinha tornado
ruidoso. O meu pai pegou em mim e explicou-me nessa noite as vantagens de se
morrer e que nós tínhamos o nosso tempo de eternidade. Na nossa vida havia um
pedaço de infinito em que todos os segundos contavam. Era a morte que nos dava
a urgência e a necessidade de nos superarmos. A vida podia enganar o tempo,
bastava dar-lhe sentido. Ironizava comigo que se fosse possível congelar as
pessoas, para lhes prolongar a vida quando a ciência estivesse mais
desenvolvida, estaríamos a obrigar as pessoas do futuro a descongelar muita
porcaria. Poucos meses depois, o meu pai esteve à beira da morte. Ia, com Lino
de Carvalho ao volante, para um comício, vinham de várias directas e
adormeceram. Esteve 15 dias em coma a lutar para viver. Sobreviveu com mazelas
irrecuperáveis. Nunca aceitou as suas limitações. Tentou recuperar pela escrita
e pelo trabalho aquilo que tinha perdido em capacidade.
O meu pai
queixava-se de o meu avô ter morrido jovem e de nunca lhe ter dito o
suficiente. O meu avô nunca o tinha visto jovem, nunca o tinha visto homem. A
última imagem que tinha dele foi quando lhe tinham pedido que o beijasse morto
e o meu pai, adolescente, só tinha conseguido chorar.
Tive a sorte
de conhecer o meu pai. Um jovem de cabelo branco, preso pela primeira vez aos
17 anos, para quem as causas e as paixões eram a única razão para respirar.
Corria atrás do tempo perdido em quatro anos nas celas de Peniche. Dizia-me que
a minha geração tinha muito tempo de avanço e que nos cabia aproveitá-lo. Havia
uma urgência ditada pela entrega política e pela necessidade de viver em
permanente estado de paixão.
Quando a
sombra frágil que está ligada à máquina falhar terá ficado nos seus a urgência
em que na vida curta tudo vale a pena. As paixões como as revoluções são
tentativas de rompermos as leis que nos condenam à mediocridade e à servidão.
No fim estaremos todos mortos, o que conta é termos sido capazes de um gesto
livre.
Cresci a
escutar a história de uma revolta perdida. íamos mudando de país em país:
Checoslováquia, Argélia, Suíça, França, e chegámos a Portugal como
clandestinos. À noite o meu pai não se cansava de me contar, como se fosse um
conto de fadas, a história da Revolta dos Anjos. Dizia-me que depois de muitos
abusos e opressão, os anjos tinham decidido revoltar-se. Na véspera do grande dia,
o líder dos revolucionários sonhou que triunfava e ocupava o trono do tirano. O
pesadelo começava, pouco tempo depois, com a canga das coisas inevitáveis, os
revoltados tornavam-se senhores em vez dos senhores que tinham jurado derrubar.
Depois de acordar, Lúcifer teria desistido da insurreição. A história tinha uma
moral óbvia que nos impelia à prudência. Contudo, teimávamos em não lhe
obedecer, apesar de sabermos que a maior parte dos esforços são vãos.
Transformar
o mundo e mudar de vida, como exigiam Marx e Rimbaud, parece muita vezes sem
sentido. Mas há algum sentido em estar parado? Nos seus Provérbios do Inferno,
William Blake garantia: “O que deseja e não age gera pestilência.”
A
guerra dos anjos revoltados contra o poder de Deus é uma guerra perdida. Mas é
um grito contra a adversidade.
Como
escrevia Giambattista de Marino, no seu Satã, “[…] e mesmo se tombarmos
vencidos, ter tentado tão alto feito é ainda um triunfo…”
Da
mesma forma que a nossa vida é um grito que ecoa no meio da morte.
in:
Este texto bateu-me fundo. A morte é o pano de fundo da nossa vida, mesmo - e sobretudo! - quando não pensamos nisso. Aquilo que Unamuno dizia ser "o sentimento trágico da vida" é a consciência da finitude, sempre presente no homem lúcido. Mas é aí que está a grandeza do Homem.
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