24.5.10

RECORDAÇÕES DE ALPIARÇA I

Foto Alpiarça Flirckr


Como é bom voltar contigo aos lugares de outro tempo... Recordar o que escrevi numa visita solitária:

«Estou no adro da Igreja. O sino toca as seis da tarde. As árvores projectam sombras e algumas andorinhas voam rasantes na faina dos últimos insectos. Parece-me ouvir os baloiços a chiar nos ganchos. Impressão minha. Aquele além, quem é? O Joaquim Gargalo? O Malacho? E o outro com um guiador de arame, a imitar os das bicicletas de corrida, não é o António Cândido, que morava no pátio do outro lado do muro do adro? Ninguém me responde.
Fico parado, frente ao cruzeiro de pedra. O que oiço, são ruídos do passado ou vozes do presente? Aqueles vultos, rapazes descalços e de fundilhos sobre o cotim, que vêm de tão longe para me encherem os olhos de água, onde param agora, tantos anos passados sobre as tardes de verão, quando tudo era possível porque ainda nada ou tão pouco tinha acontecido?

    Entro no templo. Um silêncio alto, uma penumbra fresca, as imagens nos altares, impávidas como foto­grafias. Vem da infância este cheiro a cera de velas, o arrastar de pés de uma velhinha que entra atrás de mim, as contas do terço a baloiçarem contra as costas dos bancos.
Arrepia-me o ar frio da nave. Mas lá adiante, sobre o altar-mor, uma figura apaziguadora saúda-me, de mão levantada. Talvez me tenha reconhecido. Aquele Cristo de madeira foi visto por tantas gerações que eu, comovi­do de novo, já não me sinto só. O frio de tantas recordações transfigura-se numa luz cheia de doçura.

Caminho lentamente pelo meio da Igreja. Do coro alto vem o eco do órgão, tocado por dona Maria de Lurdes Casqueiro... E vozes femininas em cânticos de júbilo: dona Casimira, as irmãs Matos Alves, dona Micas... Quando chego por baixo do grande arco fico parado, de olhos fechados. Muito tempo. De olhos fechados, para ver um Homem que por ali andou durante trinta e quatro anos da sua vida.»
             
 in: Voz de Alpiarça, Agosto 2003, em memória de meu pai que, entre 1946 e 1980, foi sacristão, cobrador de quotas, ajudante de contabilidade, administrador do "Voz de Alpiarça"

4 comentários:

Unknown disse...

Méon,

e em todos os momentos evocados há uma presença, um olhar, um viver, que fizeram de ti HOMEM!!!

Mesmo que não estejam presentes físicamente todos quantos te acompanharam na tua caminhada até ao presente...eles revivem nos teus afectos, nas memórias que persistes em viver!!!!

Sinto-me privilegiada por partilhar tanto!

Beijinho.

Paúl dos Patudos disse...

Que palavras bonitas meu amigo e carregadas de emoção.Em alguns aspectos, me senti transportada para dentro do texto e senti o ar fresco da igreja. Foi bom recordar assim desta forma tão apaixonada, os sitíos por onde andámos em alguns momentos da nossa vida.
bjo
Ana Paula

Diniz disse...

Caro M'eon
Aqui no outro lado ,acabo de ler este poema de Amalia Bautista… ,que assenta lindamente neste teu recordar de Alpiarça.



Ao Fim


Ao fim são muito poucas as palavras
que nos doem a sério e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
São também muito poucas as pessoas
que tocam o coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.
E ao fim são pouquíssimas as coisas
que em nossa vida a sério nos importam:
poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.

Joaquim Moedas Duarte disse...

Avelã:

SEMPRE, enquanto respirarmos, a partilha...


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Ana Paula:

Espaços comuns, a amizade conterrânea. Que perdure!


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Dinis:

Um poema que mais aproxima dois amigos, tantos anos passados: no olhar, na saudade, no essencial frente ao crepúsculo...


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A minha gratidão!