28.5.10

A COISA MAIS ÓBVIA - OS TELEMÓVEIS


Deambulando pel' O FANTASMA SAI DE CENA, do P. Roth, rio-me com esta página.
Pensei-a quando começou a fúria dos telemóveis mas nunca seria capaz de escrevê-la como só ele sabe. Tão perto e tão longe da experiência de cada um.

«Que me surpreendeu mais nos meus primeiros dias de deam­bulação pela cidade? A coisa mais óbvia - os telemóveis. Lá no alto da minha montanha ainda não tínhamos cobertura de rede,  cá em baixo em Athena, onde a têm, raramente via pessoas a andar na rua falando despreocupadamente para dentro dos seus telefones. Lembrei-me de uma Nova Iorque em que as únicas pessoas que subiam a Broadway parecendo que iam a falar sozinhas eram malucas. Que tinha acontecido nestes dez anos para que de repente houvesse tanto para dizer - tanto e tão urgente que não pudesse esperar para ser dito? Para onde quer que eu fosse, havia sempre alguém que caminhava na minha direcção a falar ao telefone e alguém atrás de mim a falar ao tele­fone. Dentro dos carros, os condutores iam ao telefone. Quando me metia num táxi, o taxista ia ao telefone. Para quem muitas vezes passava dias seguidos sem falar com ninguém, não podia deixar de me perguntar o que seria que antes refreava as pessoas e agora tinha desaparecido a ponto de as levar a falar constante­mente para dentro de um telefone em vez de passearem sem terem ninguém a vigiá-las, momentaneamente solitárias, assi­milando as ruas através dos seus sentidos animais e pensando as miríades de pensamentos que as actividades de uma cidade inspiram. Para mim, aquilo fazia as ruas parecerem cómicas e as pessoas ridículas. E no entanto também me parecia uma verda­deira tragédia. Erradicar a experiência da separação não pode deixar de ter um efeito dramático. Quais serão as consequên­cias? Sabemos que podemos contactar a outra pessoa em qual­quer altura, e se não pudermos ficamos impacientes - impa­cientes e furiosos como pequenos deuses estúpidos. Percebi que o silêncio de fundo tinha sido abolido há muito dos restau­rantes, elevadores e estádios, mas que a imensa solidão dos seres humanos tivesse de produzir neles esta ilimitada necessidade de se fazerem ouvir, e a concomitante indiferença ao facto de serem ouvidos por quem quer que fosse - bem, eu, que tinha passado grande parte da minha vida na era da cabina telefónica, com sólidas portas de dobrar que permitiam fechá-la bem fechada, fiquei impressionado com toda esta falta de privaci­dade e ocorreu-me a ideia para uma história em que Manhattan se transforma numa sinistra colectividade em que todos espiam todos os outros, todos são controlados pela pessoa que está na outra ponta da linha do seu telefone, ainda que, ligando inces­santemente uns aos outros de qualquer ponto do grande espaço aberto, os telefonadores acreditem estar a usufruir da máxima liberdade. Sabia que pelo simples facto de inventar tal cenário estava em sintonia com todos os excêntricos que imaginaram, desde os primórdios da industrialização, que a máquina era inimiga da vida. Mas não podia fazer outra coisa: não percebia como alguém podia acreditar que continuava a viver uma exis­tência humana andando por todo o lado a falar para dentro de um telefone durante metade da sua vida vígil. Não, aquelas engenhocas não prometiam nada de bom para a promoção da reflexão entre o público em geral.»

O Fantasma sai de Cena, Philipe Roth, Dom Quixote, 2008

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