22.1.07

PARA A MINHA AMIGA "AVELÃ"











NO SITE " VIDAS LUSÓFONAS " ENCONTREI UM TEXTO DELICIOSO SOBRE JOÃO ROIZ DE CASTEL-BRANCO. Transcrevo uma parte, o célebre CANTIGA PARTINDO-SE:

- Precisas dizer muito mais, ó Joam Roiz... Antes de ti, na corte os jograis tocavam e cantavam. Mas depois a poesia palaciana, da qual és um exemplo típico de trovador, limitou-se a declamar. Há porém um golpe de mágica na tua CANTIGA, PARTINDO-SE porque ela consegue incorporar a música no próprio texto. De tal forma que, no meu século XX (e já lá vão cinco séculos...) Alain Oulman sobre ela compôs melodia que Amália Rodrigues interpretou. E o mesmo aconteceu com o nosso compositor e cantor Adriano Correia de Oliveira. Pergunto: que mágica foi essa que tu usaste?

- Não foi mágica, foi engenho.

- Explica lá esse engenho.

- A CANTIGA é toda em redondilha maior, sete sílabas. E todos os versos têm dois acentos tónicos, ora na 3.ª e 7.ª sílaba, ora na 4.ª e 7.ª ora na 5.ª e 7ª. ora isto, ora aquilo. Desta forma consegui eu criar um ritmo avassalador.

- Está tudo explicado?

- Não, não está. Há também um engenho especial para as rimas. As dos primeiros quatro versos, emparelham a rima do 1.º com a do 3.º e a do 2.ª com a do 4.º. E essas rimas encontram eco nos últimos quatro versos. E os cinco versos que ficam pelo meio, também rimam entre eles, o 5.º com o 7.º e o 8º., o 6.º com o 9.º.

- É tudo?

- Não, ainda não. Falta apontar o advérbio tam, surda pancada que antecede tristes, termo este que domina toda a CANTIGA. Tam irrompe dez vezes. Duas nos quatro primeiros versos. Cinco nos cinco seguintes; cinco em cinco é coincidência que favorece puxar a trela de cinco adjectivos. Mais informo que os três derradeiros tam surgem nos últimos quatro versos. Percebeis a intenção?

- Não sei. Canta lá essa tua CANTIGA para eu verificar se percebi.



E ele canta:

CANTIGA, PARTINDO-SE

Senhora partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.



Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.


Partem tam tristes os tristes
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

A VIDA - HOMENAGEM A JOÃO DE DEUS





João de Deus (1830-1896) nasceu em São Bartolomeu de Messines, distrito de Faro.
Advogado e jornalista, alcançou popularidade e glória com a Cartilha Maternal (1876) em que propôs a renovação e divulgação do ensino das primeiras letras.
As suas poesias foram reunidas na colectânea Campo de Flores, publicada em 1893. Foi um dos grandes amigos e admiradores de Antero de Quental.
Do longo poema “A Vida” retirámos os versos mais conhecidos:

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou.
A vida – pena caída
Da asa de ave ferida –
De vale em vale impelida
A vida o vento a levou!
(João de Deus)

TEXTOS QUE NÃO PODEM FICAR ESQUECIDOS

POESIA


a estação maior das nossas
vidas é a infância

o desenho distraído de Deus
a breve ferocidade das coisas
um ou outro vocábulo
desequilibrando a morte

a penumbra vem depois
fabrica-se
nos traços
nas manchas de cor
nos algares desfeitos pelo vento
na linguagem transformada em
matéria sensível, atrito

a estação maior das nossas
vidas é a infância

Fernando Jorge Fabião



sobre os andaimes
andam pintores
vertendo a vida;

com a tinta mal esclarecida
na parede, o que lhes dói
é a mancha repetente

como não saber o tempo
que leva um homem lá em cima
gritar por nova mistura;

nos andaimes, esquecidos
andam meus olhos vertendo
vida, de tão altos

Luís Filipe Rodrigues

20.1.07

RECORDAÇÕES








Lembro-me disto como se o tivesse vivido ontem: o jardim envolto numa obscuridade de noite luarenta, um calor moderado como às vezes se sentia em certas noites de Agosto, um banco corrido onde ficávamos na conversa até já não haver movimento na rua. Era em Alpiarça, anos 60, e nós aprendíamos uns com os outros a falar da vida e do que ela nos ia revelando. Eu iniciava-me no travar fumo, tossicando meio engasgado, e o meu “professor” que fumava já à homem, chupava cigarros sem filtro e ia cuspindo para o chão os nicos de tabaco que se agarravam aos lábios. Falávamos das miúdas com o ar entendido de quem não sabe nada mas imagina muito. Contávamos intimidades com risos lúbricos e mentiras descaradas em que todos fingiam acreditar.
Nisto ouvimos um grito. Olhámos através do gradeamento do jardim e vimos uma mulher a correr pela Rua Direita e a gritar: “morreu o meu menino!... morreu o meu menino!...” Alvoroçados fomos para ela e perguntámos: “morreu quem? O que é que aconteceu?...” E ela em soluços, atirando as mãos ao ar: “ o João Calçada, morreu o João, o meu menino...” “Onde, onde é que ele morreu?” – perguntei eu que tinha sido colega do João nos Externato S. Paulo, anos antes. “Foi morto, o meu menino foi morto em Moçambique, ele estava lá a fazer a tropa!...”
Nunca mais esqueci. Fui amigo do João, andei à briga com ele, brincámos, jogámos à bola. Pequenito mas muito mexido, de uma alegria transbordante, o João. Deixou de ir ao jardim muito antes de nós, a vida levou-o para longe, tínhamo-lo perdido de vista. Nas matas de Moçambique, uma emboscada parou-lhe a vida. Meses depois voltou a Alpiarça, para o repouso eterno. Recordo os irmãos – o Zeca e a Teresa – que vi, passado algum tempo, sufocados de lágrimas.
Lembro-me disto como se o tivesse vivido ontem, e já lá vão quase quarenta anos. Não sei o que me avivou estas memórias, hoje. Talvez por ter um filho chamado João, de vinte e três anos e cheio de projectos.
No grande caudal da vida, todos chegaremos à foz. Mas nunca perdoaremos os senhores da guerra que afundaram prematuramente os projectos de tantos jovens como o João Calçada.

«NASSREDINE, O VAGABUNDO»

António Manuel Alcobia foi um dos meus pontos de referência na juventude. De porte altivo, tinha farta cabeleira sobre uma testa ampla, a voz rouca e os gestos desprendidos mas firmes de quem vai à frente e não liga à plebe. Eu sentia-me miudeco ao pé dele apesar da escassa diferença de dois anos a menos.
Recordo uma daquelas noites de verão no jardim de Alpiarça, quando chingávamos o pobre Laurentino jardineiro que se via obrigado a ameaçar “Vão p’lá lua! Vão p’lá lua!” – por um defeito na fala ele não conseguia dizer “rua”. Numa dessa noites o Alcobia estava inspirado. E perante o meu já desperto gosto pela leitura, desatou a falar num livro que acabara de ler: “Nassredine, o Vagabundo”. Cresceu-me a curiosidade e pedi-lhe o livro. Quando mo entregou aguçou-me o apetite: “Hás-de ver aquela passagem em que ele está cheio de fome e sente um aroma de comida a passar-lhe pelos nariz... É fabuloso!”
Li, deliciado as aventuras do vagabundo que para mim ficou como o símbolo do homem intrinsecamente livre, senhor de uma filosofia do desprendimento que hoje ainda mais se agiganta face ao consumismo em que vivemos. Nunca mais esqueci este livro.
Agora, vejam bem: num país tão pequeno como o nosso, saí de Alpiarça com 18 anos e não voltei a ver o António Manuel. Vim a encontrá-lo na página 7 deste jornal, em Dezembro passado, na rubrica “Como vamos de leituras”. E de que livro falava ele? Adivinhem!
Aqui vai um abraço para ti, saudoso amigo, e a esperança de um encontro para breve. Pode ser?