31.1.08

...RESTO DE UM POEMA




O teu rosto inclinado pelo vento;

(...)

navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, ou o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.

(Eugénio Andrade, LITANIA)

30.1.08

SABEDORIA ANTIGA



OS DOIS FICARAM SUJOS

Um moleiro
E um carvoeiro
Travaram-se de razões;
Era um da cor da neve
Outro da cor dos carvões.
Cada qual deles teimava
Que o outro mais sujo estava;
Tinham ambos a mão leve,
Choveram os bofetões.
E qual foi o resultado?
Um ao outro se sujou;
Pois ficou,
O carvoeiro ,
Empoado;
E o moleiro
Enfarruscado.

Assim fazem as comadres,
Se começam a ralhar;
Assim fazem os compadres,
Se a política os separa:
Cada qual sem se limpar,
Consegue o outro sujar;
Nem é isso coisa rara.

Henrique O'Neill (1819-1889)

28.1.08

HOMENAGEM A FERNANDA BOTELHO.





Nasceu em 1926, faleceu em 11 de Dezembro de 2007. Inesquecível, a minha primeira experiência de leitura de um "romance moderno": «A Gata e a Fábula», de Fernanda Botelho, que levantei na biblioteca itinerante da Gulbenkian de Santarém por indicação de António José Forte, que lá trabalhava.
Mais conhecida como romancista - foi Grande Prémio de Romance da APE, com «As Contadoras de Histórias» - F. Botelho iniciou-se nas letras como poeta.
É dela esta poema:

AMNÉSIA

Posso pedir, em vão, a luz de mil estrelas,
apenas obtenho este desenho pardo
que a lâmpada de vinte e cinco velas

estende no meu quarto.

Posso pedir, em vão, a melodia, a cor
e uma satisfação imediata e firme:
(a lúbrica face do despertador
é que me prende e oprime).

E peço, em vão, uma palavra exacta,
uma fórmula sonora que resuma
este desespero de não esperar nada,
esta esperança real em coisa alguma.

E nada consigo, por muito que peça!
E tamanha ambição de nada vale!

Que eu fui deusa e tive uma amnésia,
Esqueci quem era e acordei mortal.

27.1.08




Vou:
disperso nas horas
incerto nos passos.

Rezo:
Vida, havias de trazer horas brutais,
horas abertas,
rasgadas por minhas mãos ansiosas
de lúcidos temporais!

Penso:
se as não rasgar por minhas mãos
a Vida não as dará jamais.



(Manuel da Fonseca)




24.1.08

PARA PURIFICAR O AMBIENTE...

Redondo, Alentejo



Convento de S. Paulo, Serra de Ossa, Alentejo

Destesto deixar este espaço poluído com figuras e assuntos tão desgostantes como os que aí estão atrás a falar do ME e de quem lá manda!

Há que sanear, limpar, ajardinar, erguer um muro à volta da montureira...

23.1.08

REFORÇANDO...

Em reforço do que há pouco escrevi, em estado de indignação, peço aos meus eventuais leitores que dêem uma saltada a um dos melhores blogues que conheço sobre os problemas do Ensino em Portugal. Vale a pena: informa, interpreta, opina. E tudo com elegância, fundamento, critério.
Basta clicar AQUI

M E N - T I - R O - S A ! !



Esta senhora é mal formada! Lamento dizê-lo assim, com todas as letras, falando de alguém que dirige a área profissional em que trabalho há muitos anos!
É muito grave que a Ministra da Educação do meu país use métodos indignos para se desculpar da incompetência da sua equipa. E dela própria, que é responsável por tudo o que de bom ou mau se faz naquele ministério.
O caso é este:
Acabo de a ouvir no telejornal da SIC falando sobre as críticas ao modo com está a ser lançada a avaliação do desempenho dos professores. Disse textualmente que tudo estava bem e que não respondia a críticas. Com ar arrogante, de quem já aprendeu com o mestre, o sr. Sócrates. Reafirmou que o processo estava decorrer normalmente e que as escolas tinham todas as condições para avançarem com ele.
Quem está nas escolas sabe que isto É MENTIRA! É MENTIRA! É MENTIRA!!!
A nossa indignação cresce dia-a-dia. Não conheço NINGUÉM que esteja de acordo com isto. Basta ir à blogosfera e consultar as dezenas de blogues que se erguem em peso contra este modelo de avaliação, inadequado, montado à pressa, nas costas dos interessados.
Aprópria legislação feita pelo Ministério da Educação não está a ser cumprida. Exige prazos que é impossível respeitar.
A mentira maior: o já famigerado Artigo 6º do Decreto Regulamentar nº 2/2008, de 10 de Janeiro, que diz:
"1 - Os avaliadores procedem, em cada ano escolar, à recolha, através de instrumentos de registo normalizados, de toda a informação que for considerada relevante para efeitos da avaliação do desempenho. 2 - Os instrumentos de registo referidos no número anterior são elaborados e aprovados pelo conselho pedagógico dos agrupamentos de escolas ou escolas não agrupadas tendo em conta as recomendações que forem formuladas pelo conselho científico para a avaliação dos professores".
Pois bem: este CONSELHO CIENTÍFICO ainda não existe! Não existem, portanto, quaisquer recomendações. Que são absolutamente necessárias para uniformizar procedimentos e obviar a que cada escola, de norte a sul do país, faça o que entende, transformando a avaliação numa manta de retalhos à vontade de cada freguês.
Ao esconder este facto, Maria de Lurdes Rodrigues MENTE sobre a normalidade do processo de avaliação!
Temos direito á indignação! E não nos calaremos. Saudamos as escolas que por esse país fora estão a recusar-se a participar nesta fantochada.
Tudo tem um limite! Esta equipa do Ministério da Educação já foi longe de mais!
Demitam-se!

"Se bem me lembro..."



O «LUGAR ONDE» sobre Vitorino Nemésio já está no forno para sair quentinho na próxima Sexta-feira...

Também pode ser visto AQUI.

Como diria o Tarracha, engraxador à porta do café Central, na Praia da Vitória:

-Grande escritor! O homem até sabia tocar viola!!...

22.1.08

RIR!!!!

Vale a pena vir aqui. PARA RIR!!! E rir faz bem!

DUNAS




Lá onde a garça deixa
O seu último ovo
E os juncos melodiosos vão ao vento,
Aí, nem uma queixa
Nem sentimento
Novo.

Lá onde areias, bicos, água, o extenso
Mar sozinho se der,
Lá, só um lenço
E um malmequer.

O lenço, humano, pequenino
E o malmequer selvagem:
Ele só, teimoso e fino,
Guarda segredo à aragem.

Flor breve,
Adeus das dunas,
O malmequer me quis bem.
Em seu corpo radiado o mar me escreve
De amores piratas, sobre escunas
Que já não salvam ninguém.
Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida

20.1.08

ALGUÉM ME DEU UM RIO...


Poema (sobre um rio)

Nada, nada pode afastar-me do meu amor
Ali na outra margem.
Nem mesmo o velho crocodilo
No banco de areia entre nós
Nos pode separar.

Avanço apesar disso,
Caminho por sobre as ondas,
O seu amor reflui através da água,
Lançando ondas até à terra firme
Por onde eu possa caminhar.

O rio é o nosso Mar Encantado.

In: Poemas de Amor do Antigo Egipto, trad. Helder Moura Pereira, ed. Assírio & Alvim.

17.1.08

OBRIGADO, ANTERO VALÉRIO



Pões humor onde há negrume, ajudas-nos a rir da desgraça, contribuis para não perdermos a esperança num tempo novo.

Esta gente há-de passar! Corramos com eles!!!
(Ver: ANTEROZÓIDE AQUI)

SÓCRATES e o seu governo


A arrogância é uma característica que, durante algum tempo, pode ser confundida com determinação. Com o passar do tempo, transforma-se em algo demasiado abrasivo para ser tolerado.

Cândido da Silva , jornal Público

16.1.08

O TEXTO DA PETIÇÃO

No post anterior fiz o apelo.
Eis o texto da petição que pode ser assinada AQUI
Está em período de debate público apenas por um mês o Regime Jurídico de Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário.
Não apenas como profissionais da Educação, independentemente de qualquer filiação organizacional, mas também como cidadãos e encarregados de educação atentos, queremos manifestar o nosso desejo de um debate digno e alargado sobre um assunto tão importante como este que não pode ficar circunscrito a gabinetes ou a algumas reuniões longe do escrutínio público de todos os interessados.
Fazemos este apelo porque temos consciência de que estas mudanças terão repercussões profundas na qualidade do ensino ministrado nos estabelecimentos do ensino público e que nem todas essas repercussões se encontram devidamente avaliadas neste momento.
Para além disso, este projecto de alteração do regime jurídico ainda em vigor não se apresenta como resultante de uma necessidade pública, claramente sentida e demonstrada na e pela sociedade civil e comunidades educativas, de reformar o modelo em vigor. Pelo contrário, surge na sequência de uma profusão legislativa que se tem norteado por alguma incoerência entre as intenções manifestadas e as condições concretas existentes no nosso sistema educativo, o que desde logo nos suscita as maiores reservas quanto à sua validade.Não esqueçamos que:
• No sistema educativo português os alunos têm sido alvo de reformas sobrepostas, mal preparadas e pior implementadas.
• Tais reformas sucedem-se sem serem devidamente avaliados os resultados das reformas anteriores,
• A não avaliação aprofundada de todas as medidas e do seu efeito no sistema leva a que os actores institucionais e a cidadania se interroguem sobre as razões destes sucessivos fracassos.
• Apesar de todas essas reformas, os índices de literacia (global ou funcional) continuam dos mais baixos, enquanto que as taxas de insucesso e de abandono escolar são das mais altas, não apenas em termos europeus, como até mundiais.
• Com um novo modelo de gestão, insuficientemente fundamentado e imposto em nome de uma desejável autonomia e abertura da gestão dos estabelecimentos de ensino às comunidades, corre-se o risco de um agudizar das disfunções que o sistema vem demonstrando, com consequências imprevisíveis não só em termos pedagógicos como da coerência, integridade e solidariedade do sistema público de ensino.
Perante este panorama, que aconselha a maior prudência em novas alterações na arquitectura do sistema público de ensino e perante as incoerências internas do projecto do Ministério da Educação em termos operacionais e a sua aparente inadequação quanto ao quadro legislativo em que se insere, nomeadamente quanto à Lei de Bases do Sistema Educativo, os signatários deste manifesto, reivindicam, por isso, ao Governo e ao Ministério da Educação que:
a) Exista um prazo suplementar de dois meses para discussão da proposta governativa;
b) Se promovam debates públicos em todas as escolas do país, mobilizando as comunidades educativas para a discussão das qualidades e óbices do novo modelo proposto;
c) Se faça a divulgação de todas as análises dos dados estatísticos e outros estudos de departamentos do Ministério da Educação, com especial relevo para a Inspecção Escolar relativos ao desempenho das Escolas em matéria de gestão que justificam a necessidade de mudança do modelo existente.Apelamos ainda a que todos os intervenientes das comunidades educativas (alunos, encarregados de educação, docentes, funcionários não docentes, autarquias) se mobilizem para uma discussão alargada da Escola Pública.
Só com o activo envolvimento de todos na preparação de reformas com esta dimensão e impacto numa área crítica como a Educação é possível garantir que a mudança se transformará em algo positivo e não meramente instrumental.
Os órgãos de gestão das escolas e os Centros de Formação estarão, naturalmente, vocacionados para organizar e dinamizar este debate.Os autores deste manifesto reiteram que não representam quaisquer organizações socio-profissionais de professores ou profissionais de educação actualmente existentes ou em processo de formação, sejam elas de natureza sindical, profissional, científico-profissional ou outra. Desejam afirmar, porém, que as organizações acima referidas são organizações da sociedade civil com legitimidade própria para se pronunciarem sobre as questões respeitantes ao sistema de ensino e à governação das escolas;
Deste modo, num contexto em que o poder político afirma a necessidade de envolver a sociedade civil na governação das escolas, a eventual limitação da intervenção no debate destas organizações e/ou movimentos independentes constituídos especificamente para este efeito, comprometerá gravemente a legitimidade dessa governação e das políticas que a determinam, gerando inevitavelmente fenómenos de inércia na sua aplicação, em grande parte resultantes da forma como a informação e o debate (não) se realizaram.

Está a correr na net uma petição que vale a pena considerar:


Trata-se do novo modelo de gestão das escolas. Como tem sido timbre deste Governo, a legislação é cozinhada nos gabinetes e sai depois, embrulhada em plástico, como "fast food" sem alternativa.

Foi assim, também, com a avaliação do desempenho dos professores, que está a ser "montada" à pressa nas escolas, com os Conselhos Executivos e os Coordenadores de Departamento de faca no pescoço, encostados à parede.


E nós? Vamos ficar no redil, a fazer "MÉÉÉÉ!!!", enquanto a alcateia mantém o cerco?

15.1.08

...breve na paisagem



Guardo na pele a luz da tinta
é aí que as palavras ardem
à passagem do sangue

na pele tudo é profundo
ouve-se a água no início do sono
flor estilhaçada na sombra dos dedos
e um talento vagoroso
percorre as veias
uma promessa de paz ilumina as roseiras

dirás que o corpo é uma casa de sol
um relãmpago breve na paisagem
(Fernando Jorge Fabião, Nascente da Sede, ed. Ulmeiro)
(Foto: "1000 imagens")

14.1.08



Chove...

Mas isso que importa!
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?


Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira

DORNES, a bela!


Dornes (Ferreira do Zêzere), pequena povoação do alto Ribatejo, situada numa península que resultou do enchimento da barragem do Castelo do Bode, no Zêzere.

Cresceu em volta de uma torre templária que surpreende pela invulgaridade da sua forma pentagonal, um exemplar raríssimo da arquitectura militar dos tempos da Reconquista e que foi edificada para defesa da linha do Tejo por Gualdim Pais, mestre da Ordem dos Templários.




Lugar de esmagadora beleza! Preciso de lá voltar em breve...

ILHA


Procuro o Paraíso.
E nasce, em mim, a mágoa.

Estranho mal o meu,
O mal da poesia!

Surdez de não ouvir senão a água...
Cegueira de não ver senão o dia.

(Pedro Homem de Mello)

11.1.08

FALTA DE PACHOOOORRA....ORRA...ORRA!


1º - Não tenho opinião sobre a história do aeroporto! Eu sei lá!

2º - Mas tenho opinião sobre os que falam do aeroporto: a maior parte do que se diz peca por falta de rigor ou falta de conhecimento.

3º - Sobra a burrice: falar sem ter em conta todos os dados do problema; pegar num ou dois aspectos secundários e fazer deles as questões essenciais...

4º As nossas televisões contribuem esmagadoramente para isto: o que adianta transmitir directos da Ota ou de Alcochete, às 8 h. da manhã, para ouvir a opinião de uns pobres diabos que estão a matar o bicho no café da esquina ?...

5º Mais uma vez as nossas elites falharam estrodosamente! O mal de Portugal! Trinta anos para discutir a localização de um aeroporto! E a discussão continua... continuará...



Só tenho uma maneira de seguir o assunto do aeroporto, tema a granel para os próximos dias: como se estivesse a assistir a uma revista"à portuguesa" no parque Mayer...

9.1.08

Torga: um poema "diferente"...


Miguel Torga (1907-1995) foi um dos nossos maiores escritores contemporâneos. Deixou-nos uma obra vasta, em prosa e verso. A voz, grave e solene, que ressalta das suas páginas, é a de um homem consciente das grandezas e misérias da condição humana. Por isso se deslumbra, por isso se revolta.
Inesperado, este pequeno poema mostra-nos outra faceta do grande escritor…

FANTASIA

Canto ou não canto o limoeiro
Aqui ao lado?
Ele é tão delicado!
Tem um jeito tão puro
De se encostar ao muro
Onde vive encostado…
Canto ou não canto as tetas da donzela
Que daqui da janela
Vejo no limoeiro?
Elas são tão maduras…
E tão duras…
Têm uma cor e um cheiro…

Canto!
Nem serei o primeiro,
Nem eu sou santo!

TRAPALHADAS COM AS PENSÕES


Já não bastava que os nossos pensionistas recebessem mensalidades de miséria. O Secretário de Estado da Segurança Social apareceu ontem a defender o aumento de 0,68 € mensais, uma forma de ajudar os reformados a gerir melhor o que recebem...
Hoje vem
o Ministro desdizer tão douta opinião...
Como dizia o morcão:
- Organizem-se, carago!


HISTÓRICAS AUSÊNCIAS


Faltar-me-ias tanto. Muito e tanto
como tarde de súbito a fugir
em direcção à noite. Corte tão
cheio de pagens e papoulas,
de canela e marfim.

Tudo sem ti, porém. Tudo sem ti.
(E repetir o verso faz-me bem
-consolo de quem tem o que
não há, ou seja: tu). Faltas-me em
sobressalto e em granito de
estátua que não está

e cujo corpo
nem sequer vi
nu

>(Ana Luísa Amaral, in: Imagias )

6.1.08

UM VIRA-LATAS DA LITERATURA

Sim, vira-latas, com todo o sentido elogioso do termo!
«Tenho mais apreço pelos vira-latas do que pelos chiens de pedegree» - diria Luís Pacheco se ainda pudesse dar opinião. Mas calou-se, finalmente, este incómodo escritor que abalou muita gente, azucrinou os instalados e fez chacota com os reis em fraldas de camisa.
Morreu hoje, tinha 82 anos.

A não perder o programa de hoje - CÂMARA CLARA - em que passará o excelente documentário sobre Luís Pacheco, intitulado "Mais um dia de noite". Em cerca de uma hora, o realizador António José de Almeida aborda a biografia de LP, com os testemunhos de José Saramago, Mário Soares, Rui Zink, Eduardo Ferro Rodrigues, Vitor Silva Tavares. E ainda dois dos seus oito filhos, para além do próprio Luís Pacheco.


Em Agosto de 2007 o Correio da Manhã entrevistou-o. A transcrição é a minha modesta homenagem ao grande escritor de "COMUNIDADE".
Entrevista de Luís Pacheco ao Correio da Manhã, em Agosto de 2007 (Jornalista: Miriam Assor)

Os óculos pesam nos olhos que cegaram. À cabeceira, o jornal ‘Avante’ e um livro de José Gomes Ferreira não são bibelôs, mas companhias. Luiz Pacheco, criatura de inteligência rigorosa, de lucidez sobrenatural, um livre pensador que disse e diz coisas que não são fáceis de serem ditas, está preso a um cadeirão, tem o robe vestido, o aquecedor ligado e uma manta para o frio não lhe magoar o esqueleto. Nasceu em Lisboa, na Rua da Estefânea, a 7 de Maio de 1925, pai de oito filhos – frutos de muitos amores, na vida escolhida, que foi dura por prazer, só fez o que bem entendeu.O Estado Novo prendeu-o por politiquices e por ter amado menores. Frequentou o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras e a meio mandou o curso dar uma curva ao bilhar russo. Entretanto, a Inspecção de Espectáculos admitiu-o como agente fiscal, mas sedentarismo não combinava com o seu feitio. Preferiu a situação que considera invejável: desempregado. Depois, funda a editora Contraponto onde a corrente surrealista viu muitos dos seus autores publicados. Crítico literário e cultural, tradutor, colaborou em diversos jornais e revistas, ‘O Globo’, ‘Afinidades’, ‘Seara Nova’, ‘Diário Popular’. A sua escrita caracterizada de irreverência e de poesia esbofeteou a torpeza intelectual e desafiou o lápis azul da censura salazarista. Luiz Pacheco, que, em tempos, se fez sócio do Benfica para ir aos bailes e do Sporting para ir à natação, já não dança e não aprendeu a nadar. Apesar de ter andado perto do fundo, acaba por vir sempre à tona e ao seu ritmo.
-Tinha dito que não saía do lar do Príncipe Real. Afinal, enganou-se. Vive com o seu filho.
Um gajo também se engana! A vida nos lares é uma espécie de regimento. Horários. E mais horários. E eu estive em três. O pior era a convivência com os moribundos e as moribundas. Deprimente. Os tipos iam buscar os velhos às camas e espetavam com eles num buraco a que chamavam sala do convívio. Qual convívio? Convívio nenhum! Velhotes com os olhos fechados e outros que estavam nas últimas. Ah... e havia um animador que se punha a contar de um até ao número dez. Quando a gente pensava que o tipo ia fechar a goela, desatava a dizer a numeração em forma decrescente. Ele fazia coisas incríveis! Mandava pôr a mão para cima, para trás, para os lados. Eu sei lá. O último lar era muito mau. Tinha lá uma mulata que era cleptomaníaca. Roubou uma velha muito afanada e eu também fui roubado.
-O Luiz é que não está nada afanado...
Eu não estou afanado? A miúda deve estar a brincar! Eu não estou nada bem. Tenho muitas doenças, talvez umas vinte e três. Agora tenho uma m. chamada incontinência. Para um gajo é muito mau andar de fraldas. Mas a vista é a pior das mazelas.
-Se fosse menos teimoso já tinha sido operado.
Não conte com isso! Tenho medo. E não é da anestesia. Medo das consequências. A merda da operação pode provocar um acidente cardiovascular e já viu o que era? Dizem que é coisa muito simples, mas isso são conversas. Nessa eu não caio!
-Voltar a ler não é um estímulo?
Oh miúda, eu já li muito. Nem queira saber o que eu já li. Agora é a minha filha que me lê os artigos de jornais e algum livro que eu queira ler. Ocupo o raio do tempo a ver a RTP Memória. Estou a ver coisas que nunca tinha visto. Como por exemplo, o Júlio Isidro, o Zip-Zip. Gosto de ver velhadas. Entretenho-me com o humor fabuloso do Vasco Santana, do António Silva. O Solnado é uma merda. Uma invenção. Um disparate. O Herman José é diferente. Basta ser de origem alemã para saber o que está a fazer .
-O melhor aluno do Liceu Camões gosta de velhadas...
Não me faça rir. Mas fui o melhor daquela malta toda. Entrei em 1936 e fiquei lá oito anos. Sentava-me sempre na carteira da frente, porque os meus olhos já eram dois sacanas. O avô desse tipo chamado Eduardo Prado Coelho foi meu professor. Nós cagávamo-nos no gajo.Quem eram os seus colegas?Lembro-me do José Manuel Serra, que foi director do Teatro Nacional de São Carlos, Lobo Saias, que chegou a ministro, e outros.Os liceus não eram mistos, portanto, miúdas não eram peras doces...Imagine que nem podíamos chegar ao pé de uma escola feminina. Quando chegou a altura da universidade, o convívio não foi fácil. Não estávamos habituados. Pedir um lápis emprestado era cá uma trabalheira. Só para não haver contacto, deixávamos cair o raio do lápis ao chão.
-Entretanto, os contactos melhoram... esteve preso no Limoeiro devido a aventuras amorosas.
Prenderam-me por razões políticas e por ter desflorado umas garotas que eram menores. Mas atenção: eu também era menor! Uma ocasião foram duas irmãs ao mesmo tempo. Foi cá uma chatice... Antigamente, rapazes e raparigas faziam o que hoje fazem, mas com a diferença: não tinham o à-vontade que existe hoje. A pílula foi a estrondosa revolução. Ouvir dizer que, até, os homens já podem tomar essa m. Eu nunca tomei. E sou contra o aborto. Hoje em dia as garotas têm muitas facilidades...!Um rol de contraceptivos e a pílula do dia seguinteO que é isso? O comprimido do dia a seguir à cegada?
-Sim. É contra o aborto e a favor da despenalização?
É claro! Prender moças é um autêntico disparate. Mas há malta que diz que aborta porque rejeita ter filhos indesejados. Ouça cá uma coisa: uma rapariga que se deita com um rapaz sabe do risco. E há outra malta que diz que não consegue criar filhos. Mentira. É só conversa. Eu sem cheta, desempregado, tenho oito filhos. Uma vez, fui deixar um filho à Casa Pia. Se os ‘gansos’ eram bem tratados? Coitados. Aquilo era uma miséria.
-Voltando à prisão. Como era no Limoeiro?
Uma prisão para os gajos que esperavam julgamento. Havia batota que não era a feijões, mas a dinheiro. Estava lá um enfermeiro tarado que vendia penicilina misturada com água. O refeitório era umas mesas corridas e havia um tipo que distribuía a comida. Os acordos davam direito ao prato ficar mais cheio. Naquela merda havia estratos sociais. A Sala dos Menores, a Sala dos Primários, para os estreantes, a Sala Comum, que era para a maralha, e a Sala dos Bacanos, onde estavam aqueles que tinham conhecimentos fora da prisão. Como eu. Da segunda vez que estive dentro, o Artur Ramos telefonou ao pai, que era director-geral da Penitenciária e pôs-me cá fora.
-Um homem que nunca gostou de regras nasceu no seio de uma família de militares...
Não venha com as perguntas feitas de casa. O meu avô materno era capitão-de-mar-guerra, engenheiro maquinista, e o meu avô paterno, coronel da artilharia, dirigiu o Arquivo histórico-militar. Eram militares, mas pareciam ser outras pessoas. Tinham boa cara. O pai do meu pai, aquando da primeira incursão monárquica, comandada pelo Paiva Couceiro, foi a Chaves dar umas bombadas nos canhões e teve de fugir. O meu pai estava a tirar o curso na Faculdade de Letras para ser diplomata, mas como aconteceu a Primeira Grande Guerra, a diplomacia foi para o galheiro. Não acabou o curso. Nem eu.
-Por razões diferentes?
Sim. Os professores na Faculdade de Letras eram uns chatos. Excepto o Vitorino Nemésio (que me deu 18 valores) e o Delfim Santos. Nunca engraxei o Nemésio, eu não era igual ao Urbano e ao David. Mas espere aí, deixe-me falar do ano que antecedeu a faculdade. Em 1943, quando acabei o liceu, o meu pai disse que não tinha dinheiro para eu estudar na Faculdade. Falou com o professor João de Brito, que me deixou assistir às aulas. Eu era um aluno fantasma. Não me perguntavam nada, o que era maravilhoso. Nos intervalos ia para a biblioteca. Devorei Gil Vicente, Garcia de Resende, Fernão Lopes e outros. Por essa altura comecei a dar explicações. Portanto, aprendia e ensinava. Foi um ano em cheio! No final, fiquei muitíssimo bem classificado no exame de admissão à Faculdade de Letras de Lisboa, no Curso de Filologia Romântica, e consegui ficar isento das propinas.Saiu da faculdade e, em 1946, foi admitido como agente fiscal da Inspecção de Espectáculos.Aquilo era uma treta. Não inspeccionávamos nada.
-Quando é que funda a editora Contraponto?
A editora começou a funcionar em 1951, logo depois do primeiro número da revista. Nasceu no ensaio de uma terceira via e só tinha um critério: os gajos do Estado Novo não podiam entrar. Vivia um bocado à mercê do facto de eu e o Jaime Salazar sermos amigos. Quando foi publicado o ‘Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano’, de Mário Cesariny, o Jaime ficou f. Pensava que a editora era só para ele. Mais tarde, o mesmo aconteceu com Cesariny, quando Herberto apareceu. Razão tinha o Gaspar Simões em chamar- -me ‘O sacristão do Surrealismo’, por publicar aquela gajada. Não faz muito tempo, vendi a editora à irmã do Manuel Alegre por um preço de m...
-Era amigo de Cesariny?
Essa pergunta traz água no bico. Dizem que nós éramos amantes. Um disparate. O gajo não fazia o meu género. Eu nunca tive a mania de Paris. Ele tinha.A sua colaboração nos jornais começou no ‘O Globo’, em 1945, e ainda há dez anos escrevia na imprensa. O Nicolau Santos, que na altura era director do jornal ‘O Público’, convidou-me para escrever uma crónica. Os gajos até pagavam bem. Mas tiveram o azar de anunciar Luiz Pacheco escritor polemista. Dava-lhes jeito que eu desse porrada. Mas durante meses não lhes fiz a vontade. Podem contar comigo para dar porrada, mas jamais por incumbência.
-É verdade que, uma vez, enquanto traduzia um livro, esteve quase para ser publicado um palavrão?
Publicado não digo, mas aquilo fez-me correr. Eu estava a traduzir um livro para crianças e havia uma palavra cujo significado em Português eu não encontrava. Para não me esquecer escrevi a vermelho c. Quando me lembrei... falei à editora, que me disse que o livro já estava nas mãos do revisor. Corri para a casa do gajo. E lá estava o c. marcado a vermelho, mas fui a tempo. O c. foi substituído por penacho.
-É autor de muitos livros, mas nunca escreveu romances.
Porque é preciso ter disciplina. Mas não é como escritor que posso ser importante. Se me perguntarem da minha importância é como editor. Editei muitos livros que eram muito baratos. Tinha bons autores, Raul Leal, Natália Correia, António Maria Lisboa, Herberto Hélder, Vergílio Ferreira, Mário Cesariny. Jamais editaria, por exemplo, o Fernando Namora. Ele era um aldrabão. Ou o José Agualusa, que não escreve nada. É um pateta alegre.
- O que é preciso para escrever bem?
Ler muita coisa. Estar atento. E há gajos que escrevem sem nunca terem lido uma frase.
-Gosta da escrita de António Lobo Antunes?
Muito. Gosto quando ele fala do bairro onde nasceu, Benfica. Tem muitas qualidades e anos de escrita. Mas é um bocado apanhado da pinha. Também tem a maluqueira de dizer que não consegue viver sem escrever. E tem razão. Ele é o escritor mais internacional de Portugal.
- E José Saramago?
Também, embora de maneira diferente. Mereceu o Nobel. Saramago e o Lobo Antunes têm uma coisa em comum: são escritores que já só escrevem para o estrangeiro.
-O que nos diz dos políticos?
São uns m. Comparados com eles próprios. Aquela que foi ministra das Finanças era uma tipa séria, mas era cá um camafeu.
-Gosta do José Sócrates?
Quem é? Não o conheço.
-Mas gosta de Pedro Santana Lopes?
É um ‘bom vivan’. Não deixou obra nenhuma, mas sabe viver. Andava nas discotecas e estes gajos – o pequeno, o gajo que é quase anão – fez-lhe a folha. O Santana é um senhor. Gosta das noites. E bebe o seu copinho. Eu deixei de beber há uma semana. Ao almoço bebia vinho – tinto, pois está claro. Quando se fala em vinho fala-se em tinto.
-João Soares, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa, fez-lhe uma visita e trouxe-lhe umas garrafas de tinto.
E que belo tintol! Apareceu no Natal, com um funcionário. Trouxe-me vinho, um belo presunto e livros. Vinha com a ideia maluca de eu fazer um artigo sobre o governador do Costa do Castelo.
-O País reconhece as pessoas?
Não podemos falar de um só País. De Lisboa ao Porto existem dois países ou, talvez, existam quatro países em Portugal. Por exemplo, o Mário Soares, quando era Presidente da República, deu-me 650 contos. Uma vez, no Chiado pedi-lhe 20 paus emprestados. E ele deu-mos. Este presidente, o actual, que tem aquela cara, não me deu nada.
-Vive de alguma pensão?
Tenho um subsídio de 120 contos, graças ao Alçada Batista. E também ao Balsemão, que teve a feliz ideia de inventar o decreto do mérito cultural. O Santana despachou um decreto que favorece pessoas que estão na minha situação. Mas não é por isso que gosto do rapaz. O tipo sabe o que é bom. O que é bom para mim são umas garotas, que vêm cá de manhã para me fazerem a higiene. Não é mau.

4.1.08

O ESPLENDOR DA ESTUPIDEZ

A dois km ao sul da Ericeira fica a foz do rio Lisandro (não confundir com o rio Sisandro, que desagua mais a norte, na Praia Azul, já no concelho de Torres Vedras).
O rio tem seu curso final no verdejante vale da Carvoeira, onde irriga muitas hortas saloias. Já cansado, entrega-se ao mar numa foz muito bonita, um pouco mais adiante, entre a pequena colina rochosa que o amapara na margem esquerda e um lençol de areia por onde se alarga nos dias mais exuberantes quando a chuva o engrossa.
Andei por lá nos finais de Dezembro, tentando alhear-me da margem direita, fixando estas imagens:





Mas eu tinha de regressar ao carro e não pude fechar os olhos. Todo o horror da estupidez humana está ali resumido. Peço desculpa por ter estragado o que viram antes, com estas imagens confrangedoras.





Parece que a Câmara de Mafra tem um plano para esbater este horror. Sim, é bom que o tenha. É urgente que o ponha em prática!

O que lá está ultrapassa os limites da decência. O pior de Portugal em todo o seu esplendor: o "portuga" que se julga com direito a também ter uma casinha na praia. O taberneiro que vende cerveja e caracóis no Verão, enquanto a mulher lava as fraldas do miúdo no tanque das traseiras.

3.1.08

VITORINO NEMÉSIO (1901 - 1978)


Recordo o professor que fazia das aulas uma viagem assombrosa pelas avenidas da literatura. Referências caóticas por vezes. Outras, de um humor desconcertante. Expressivo como ninguém, emocionava-se com uma citação para logo se rir de uma piada cujo alcance só ele percebia.
No exame de Cultura Portuguesa não me fez perguntas. Esperou apenas que eu seguisse os seus raciocínios. Ele lá sabia quando um aluno estava por dentro da conversa. Ou não...
Perguntas a sério fez-me depois o seu assistente das aulas práticas enquanto Nemésio pegava num livro, com ar enfastiado...
Partiu há trinta anos.









A Concha

A minha casa é concha. Como os bichos



Segreguei-a de mim com paciência:


Fachada de marés, a sonhos e lixos.


O horto e os muros só areia e ausência.






Minha casa sou eu e os meus caprichos.


O orgulho carregado de inocência


Se às vezes dá uma varanda, vence-a


O sal e os santos esboroou nos nichos





E telhados de vidro e escadarias


Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!


Lareira aberta ao vento, as salas frias.



A minha casa... Mas é outra a história:


Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,


Sentado numa pedra de memória.






V. Nemésio, in: O Bicho Harmonioso

2.1.08

**** IMPERDÍVEL ****


Absolutamente!
O programa Câmara Clara é uma clareira de luz intensa no negrume televisivo.
Com a vantagem de ter apoio na net. Podemos sempre ir ao arquivo e (re)ver.
À distância de um CLIQUE! AQUI!
Magnífico, Paula Moura Pinheiro!

**** DESCOBERTAS ***

Quinta dos Patudos, em Alpiarça


Meu amigo de infância, aposentou-se há tempos. Não joga bisca no jardim ou dominó na sede do clube. Que faz ele, então?

Descobri ontem.

Venham daí!

É só clicar AQUI!


Parabéns, Quinzé! Um dia destes apareço pela tua "gavela".
E revejo a Quinta dos Patudos!

1.1.08

2008? 2008!!

- Fechada a elipse da translacção, entramos na 2008ª volta ao Sol e descobrimos que, afinal, a Terra continua igual! E nós também ! ...

- Olha, a novidade que este descobriu!

-Pois, novidade não é... Mas porque é que todos os telejornais começaram com ela?!




Apago a televisão e venho sentar-me ao computador. Cá estão os mesmos amigos, os mesmos espaços... E que bom eles aqui estarem!
Já tinha saudades!



Trouxe algumas fotos dos meus passeios pela região saloia.
Que bom vocês aqui estarem para poder partilhá-las convosco!



Bom ano!

















Capela da Picanceira, freg. Santo Isidoro, Mafra



Capela da Quinta dos Chãos. Santo Isidoro, Mafra.



Pormenor duma típica casa saloia, na aldeia de Lagoa, freg. Santo Isidoro, Mafra.( Janela rente ao telhado... o beiral à portuguesa...