30.10.10

LIVROS DA MINHA VIDA


O primeiro livro "à séria" que inaugurou a minha biblioteca foi este, uma versão juvenil do "Moby Dick", de Herman Melville, uma edição da Editorial Dois Continentes, Lisboa, 1955.

Foi o primeiro livro "grande" que li, em versão adaptada aos meus extasiados onze anos. Mais tarde, perante o romance com­pleto, verifiquei que o encanta­mento redobrava. Porque a dimensão da narrativa contém uma riqueza inesgotável: per­sonagens, situações, conflitos, comentários, emoções, tudo se vai desenrolando numa lingua­gem solta e bem humorada, por vezes irónica, outras vezes terna, quase sempre rigorosa e objectiva.
"Moby Dick" conta a história de Ahab, capitão do navio baleeiro Pequod, e da sua fatal obsessão de se vingar da grande baleia branca que um dia lhe arrancou uma perna. Coxeando na prótese de marfim, Ahab per­sonifica a teimosia das grandes missões, que arrastam atrás de si os aventureiros e os esfomea­dos. Buscam uns a côdea dura do sustento, outros a salvação para um quotidiano sem gran­deza. Ahab prega uma moeda de ouro no mastro grande, prémio aos que o ajudarem na luta contra o terrível monstro. Ao leitor é concedido um lugar no navio, onde terá por guia o jovem Ismael, testemunha que sobreviveu para con­tar. Com ele participará na longa viagem pelos oceanos em busca da baleia branca, esse monstro indomável que Ahab jurou vencer e que muitos interpretam como símbolo de todos os demónios que assolam a humanidade.

Para além da narração de aventuras, este livro é também um fresco riquíssimo sobre o universo dos baleeiros, o ambiente marítimo nos grandes veleiros do século XIX, a mistura de raças e etnias, de crenças e costumes, documentada na descrição dos personagens provenientes dos mais diversos lugares, onde se encontram também os baleeiros açorianos da colónia portuguesa de uma cidade portuária do litoral Leste americano.

Um mundo, este livro. Como bem diz o mais conhecido crítico norte-americano, Harold Bloom:

“Venero a epopeia de Melville desde criança, admiro nela o seu ardor extraordinário enquanto narrativa.
«Moby Dick» é o paradigma ficcional do sublime americano, de uma história que tem lugar nas alturas ou nos abismos, mas que é sempre profunda. É um livro extremamente original, sendo, ao mesmo tempo, o nosso livro de Jonas e o nosso livro de Job. Os dois textos bíbli­cos são explicitamente citados por Melville. O padre Mapple prega o seu maravilhoso sermão usando Jonas como texto e o epílogo de Ismael tem por epígrafe a fór­mula usada pelos quatro mensageiros para relatar a Job a destruição da sua família e dos seus bens terrenos: "E só eu escapei para to contar".

O grande Jorge Luís Borges também falou dele:

“No livro de Herman Melville, página a página, o relato aumenta até usurpar o tamanho do cosmos: a princípio o leitor pode supor que o seu tema é a vida miserável dos arpoadores de baleias; depois, que o tema é a loucura do capitão Ahab, ávido de perseguir e destruir a baleia bran­ca, depois que a baleia e Ahab e a perseguição que per­corre os oceanos do planeta são símbolos e espelhos do Universo".


É assim o célebre primeiro parágrafo de H. Melville:

« Chamem-me Ismael. Há alguns anos, quantos ao certo, não importa, com pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e sem nada de especial que me interessasse em terra, veio-me à ideia meter-me num navio e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que eu te­nho de afugentar a melancolia e regularizar a circu­lação. Sempre que na minha boca se desenha um es­gar carrancudo; sempre que me vai na alma um Novembro húmido e cinzento, sempre que dou comi­go a deter-me involuntariamente em frente das agên­cias funerárias ou a engrossar o séquito de todos os funerais com que me deparo; e, especialmente, sem­pre que me sinto invadido por um estado de espírito de tal maneira mórbido, que só os sólidos princípios morais me impedem de descer à rua com a ideia de­liberada de arrancar metodicamente os chapéus a to­dos os transeuntes, nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio. Catão lança-se sobre a espada com um floreado filosófico; eu, cal­mamente, embarco. Nada há de surpreendente nisto. Embora não se dêem conta, tal como eu, quase todos os homens acalentam, mais tarde ou mais cedo, este desejo de mar.»

(Edição do jornal Público, Junho de 2004, trad. de Lúcia do Carmo Cabrita Harris)

COMÉDIAS



Comédia muito melhor do que essa dos acordos, - em que há fotos de telemóvel, 500 para cima ou para baixo, ganhámos todos, perdemos todos...

29.10.10

PORTAS... JANELAS...




Entrevista de Ricardo A. Pereira a A. Lobo Antunes, na VISÃO de ontem:

(...)
«Um grande artista devolve-nos uma imensa dignidade. Eu vejo sempre o concerto de ano novo, com música do Strauss, e comovo-me até às lágrimas. E uma tal vitória sobre a morte, a música do Strauss... É preciso acreditar nas pessoas. As pessoas são tão mais ricas do que elas mesmas pensam. Nós parecemos viúvas pobres: vivemos em duas assoalha­das com serventia de cozinha. E procura­mos a porta em paredes que sabemos que não têm porta, e temos medo de abrir as janelas. E, depois, há assim uns cabrões, como o Strauss, que fazem isto por nós.» (...)

A. Lobo Antunes foi buscar o título do seu último livro a um longo poema de Camões, meditação sobre o passado e o presente, o que está longe, o que já não volta... O tempo! Os lugares!

Camões, a quem devemos também "uma imensa dignidade"...


"Sôbolos rios que vão

por Babilónia, me achei,

Onde sentado chorei

as lembranças de Sião

e quanto nela passei.

Ali, o rio corrente

de meus olhos foi manado,

e, tudo bem comparado,

Babilónia ao mal presente,

Sião ao tempo passado."

(...)




QUEM MANDA AQUI


"Os mercados são uma espécie de bicho feroz cujo aspecto ninguém conhece ao certo. A única coisa que sabemos acerca dos mercados é que levam a mal se os portugueses não passarem a pagar mais pelo leite."
Ricardo Aeraújo Pereira, revista VISÃO, 28 OUT 2010.

"O Banco Central Europeu é uma instituição "sui generis": muito mais independente em relação aos poderes políticos do que qualquer banco central; menos transparente nas suas decisões; e, por último, estatutariamente vinculado a preocupar-se apenas com a inflação e não com o desemprego ou o crescimento."
João Pinto e Castro

Actualmente a democracia é uma falácia. Quem manda, de facto, é o Banco Central Europeu, que não responde perante nenhum órgão político da União Europeia. E os "mercados" não são mais do que as ordens dadas pelos financeiros para  apertar mais ou menos o garrote ao prisioneiro que se debate para respirar.
A adesão ao Euro parecia boa, inicialmente, tal como a integração na UE. Mas revela-se, agora, uma armadilha...

27.10.10

...PIOR NÃO FICA...



Há pessoas assustadas, agora que os "cabeças" não se entenderam quanto ao Orçamento. Mas o Manel Zé e o Zé Manel já não se assustam: estão como o outro do Brasil que diz "pior não fica"!
Já estão desempregados há meses, há anos...

Que falta pachorra para aturar isto, falta!
O PS não percebe que não tem a maioria absoluta? E o outro não percebe que não está no Governo?
E o Portas não percebe que o CDS não existe, é só ele e mais um ou dois?
E o PCP não percebe que, para além dos indefectíveis, tem um discurso que afasta qualquer hipótese de se aliar com outros? E que por isso mesmo não consegue passar dos 10/11 %, por pior que isto esteja?
E o BE, não percebe que só acreditam nele os bem vestidinhos das zonas urbanas ainda não deprimidas?

Estou a ser redutor, pois estou! A política é muito mais do que isto...

O que me irrita e a muitos que ouço por aí, é ver que cada força política se julga detentora de toda a verdade. Por isso, é incapaz de se sentar a uma mesa e ouvir as outras. Todas agem e falam como se grande parte da nossa soberania não estivesse já muito longe daqui. Como se fossem capazes de resolver isto sozinhos. Como se isto estivesse mal apenas por culpa dos outros...
O Titanic mete água e eles a discutirem quem teve a culpa de ir contra o iceberg...

26.10.10

A QUESTÃO DOS "ALTOS SALÁRIOS"



Hoje, em PEDRAS ROLANTES, mais um texto de Venerando de Matos, esclarecedor pela pertinência e acerto da análise. Transcrevemos:


«Não deixa de ser curiosa a forma como os comentadores e políticos usam e abusam da demagogia quando se fala de salários.

Ontem correu a notícia de que os Juízes portugueses, no topo da carreira, eram os “mais bem pagos da Europa”.

Depois percebeu-se que eram os mais bem pagos, comparando o seu rendimento (liquido) como o rendimento médio do país.
Na verdade, como revela hoje o Público, recebem pouco mais de metade que os seus congéneres espanhóis, menos de um terço dos irlandeses. Só os polacos e os checos recebem menos.

Convém recordar que os salários mínimos (e não estamos a falar de salários médios…) em Espanha e na Irlanda são, respectivamente, cerca do dobro e três vezes maiores que em Portugal.

O truque já tinha sido usado contra os médicos e os professores.
Na realidade, num país onde as desigualdades sociais são das maiores da Europa, onde a maior parte do trabalho é precário e mal pago, o rendimento médio é muito baixo e portanto, quem esteja em profissões de topo, que exigem mais estudos e responsabilidades, recebem muito mais que a média miserável do país.

O que não quer dizer que ganhem mais ou tenham um melhor poder de compra que os seus congéneres do resto da Europa, nomeadamente da Europa do Euro, que é com esta que nos devemos comparar.

Recordo-me que, no caso dos professores, apresentavam-se estatísticas da OCDE segundo as quais o rendimento médio dos professores do topo da carreira era maior, comparativamente com os rendimentos médios do país, do que no resto da Europa. Se não me engano, apenas éramos ultrapassados pelo…México.

Por esta lógica, os professores Mexicanos e Portugueses seriam os mais bem pagos dos países da OCDE e foi esta a mensagem que então se procurou passar para a opinião pública, para justificar o corte dos “seus privilégios”.
Contudo, o que acontecia era que, sendo a situação salarial e de qualificação, no México e em Portugal, das piores dos países analisados, o salário das profissões qualificadas era muito superior a essa média.

Na realidade, se observássemos os salários reais, um professor mexicano recebia metade do português e o português ficava muito aquém da média europeia.

Ou seja, na realidade um professor português em final de carreira ( e o mesmo se pode dizer de um médico do SNS, de um professor universitário ou de um Juiz) recebia muito menos e tinha um poder de compra mais reduzido que os seus parceiros europeus, até porque, fazendo o nosso país parte dos países do euro, o custo de vida na maior parte da Europa não é assim tão diferente.

Devemos ainda acrescentar o facto de grande parte dos rendimentos assim noticiados nunca chegar aos seus “beneficiários”, já que, professores, médicos do SNS e juízes que trabalhem no serviço público, recebem apenas cerca de 2/3 daquele rendimento. O outro terço fica retido para pagamento dos impostos e da segurança social.

Ou seja, usa-se e abusa-se da demagógica manipulação estatística para tentar justificar a retirada de direitos e os cortes salariais, em nome do combate aos “privilegiados” e às “corporações”!!

Esta é uma boa forma de tentar dividir para reinar, fomentando a inveja social dos que pouco têm contra os que têm alguma coisa, desviando a atenção do verdadeiro problema: os salários e as pensões douradas dos “boys”; a fuga maciça aos impostos por parte das profissões liberais; os escandalosos benefícios fiscais do poder financeiro; a corrupção generalizada do poder político e financeiroe que o recurso aos offshores garante.»

24.10.10

IMAGENS DO MEU OLHAR - RUÍNAS DE SANTARÉM


O claustro medieval com pavimento de tábua corrida...

São célebres as páginas de Almeida Garrett nas "Viagens na MInha Terra"( publicado em 1846) sobre as ruínas de Santarém. Transcrevo alguns períodos do cap. XLI:

(…)
Pois também eu me quero partir, me quero ir embora. Já me enfada Santarém, já me cansam estas perpétuas ruínas, estes pardieiros intermináveis, o aspecto desgracioso destes entulhos, a tristeza destas ruas desertas. Vou-me embora.
E contudo S. Francisco é uma bela ruína, que merecia ser examinada devagar, com outra paciência que eu já não tenho.
Se tudo me impacienta aqui!
Da bela igreja gótica fizeram uma arrecadação militar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abolando esses monumentos preciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais polido e mais respeitado desses jazigos antiquís­simos; os lavores mais delicados, esmoucou-os, degradou-os.
Levantaram as lajes dos sepulcros e, ao som da corneta militar, acordaram os mortos de séculos, cuidando ouvir a trombeta final...
Decididamente, vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga.
Malditas sejam as mãos que te profanaram, Santarém... que te desonraram, Portugal... que te envileceram e degra­daram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua história!...
Eheu, eheu, Portugal!


Os roteiros turísticos dizem-nos, hoje, que esta cidade é "a capital do gótico em Portugal". Não duvido, depois de visitar a Igreja da Graça, a de Santa Clara, S. João de Alporão, a da Misericórdia e o covento de S. Francisco, além da Fonte das Figueiras.
O que me espanta é o que ainda restou do abandono e do desleixo que tanto revoltou Garrett. Como seria belo o edifício que tem este magnífico claustro, que sobreviveu a duas gerações que instalaram nele um quartel militar - a igreja foi palheiro, o coro alto foi refeitório de soldados!

Deixo para amanhã a página impressionante em que Garrett descreve a visão do túmulo profanado do rei D. Fernando, situado no coro alto da igreja de S. Francisco, que o leva a escrever:
"Oh, nação de bárbaros! Oh, maldito povo de iconoclastas que é este!"

O convento já há muito que não é quartel de tropa. Mas as obras de restauro demoraram, o edifício esteve fechado até há dois anos e só é visitável agora. E como não me arrepiar face ao espetáculo ridículo de um claustro gótico pavimentado a tábua encerada? É que - informaram-me na portaria - ainda não houve verba para colocar as lages que estão amontoadas no pátio central. Entretanto, gastaram-se milhares de euros na requalificação modernista do jardim da República, ali ao lado, uma obra que nada tinha de urgente, se comparada com a do caustro...
Sim, nação de bárbaros!!!


As lages do claustro amontoam-se no meio do claustro

Fotos Méon

23.10.10

HOJE EM SANTARÉM


A pureza das linhas góticas no Convento de S. Francisco, em Santarém.




 [ Lila N. convidou-nos para uma caminhada à beira Tejo, hoje. Mas esta incursão por Santarém já estava programada há muito. Em comum, tivemos o Tejo...
Amanhã ainda direi mais qualquer coisa sobre esta visita. ]

Fotos Méon

22.10.10

O LIVRO DOS ADVÉRBIOS MAL PARADOS - 1




Agora sim?
Agora não?

E mais logo? Ainda não?

Ora
vejamos:

Se cada hora
vai embora
sem demora,
mais se melhora
no sim
de cada hora!

M.
in: O Livro dos Advérbios Mal Parados

21.10.10

O LIVRO DOS ADVÉRBIOS MAL PARADOS - 2



Podia ficar aqui mas vou para ali.
Podia lá ficar, mas venho para cá.
Aqui e lá não me seguram.
Daqui para lá, de lá para cá,
distância do ir ao vir,
virose de ficar.

M. 
in: Livro dos Advérbios Mal Parados

20.10.10

Nessun Dorma - Natalie Choquette Lima Perù 2005

Acho que os meus amigos, hoje, estão precisaditos de uma boa área de ópera!

Aí vai!!!

ESSA COISA DOS FRACTAIS...



Deixa-me perplexo a incrível complexidade da vida. E sinto que muita gente partilha esta perplexidade. Hoje tudo me parece mais complicado do que antigamente. Estudei rudimentos de muitas coisas no antigo curso dos liceus e pensei que isso me bastaria para entender parte do mundo e da vida. Rapidamente percebi que não. A Físico-Química, a Geometria, a Matemática, a Biologia, a Geologia... desataram a fazer descobertas a ritmos alucinantes e o meu aturado esforço para conseguir o antigo 5º ano com Distinção revela-se insuficiente, hoje praticamente inútil.
Nada sei destes avanços científicos, a não ser as pequenas aproximações que vou lendo aqui e ali, nada de sistemático. Vejo-me a tentar perceber o mundo e a vida com o olhar aflito do meu avô que não sabia ler...

Por exemplo: acabo de saber que morreu há uma semana um dos grandes matemáticos do nosso tempo, o tal que propôs o conceito de "geometria fractal", Benoît B. Mandelbrot (Varsóvia, 20 de Novembro de 1924 — Cambridge, 14 de outubro de 2010), matemático francês de origem judaico-polonesa.
Cá está: este homem foi responsável pela minha ignorância absoluta acerca de tudo o que não cabe na tradicional geometria euclidiana, a que eu estudei.



Bastou ir à wikipédia para me sentir soterrado numa montanha de ignorância da qual jamais conseguirei sair. Sei que todas estas descobertas estão na base dos incríveis avanços tecnológicos de que todos beneficiamos hoje. O que me deixa perplexo e me faz sentir, cada vez mais, próximo do bosquímano que encontrou uma garrafa de coca-cola no filme "Os Deuses Devem Estar Loucos".




Ainda por cima as imagens de fractais ( se é que me posso exprimir assim...) são de uma incrível beleza, como se vê pelos exemplos...

17.10.10

MEDITAÇÃO

 Não se anda a mostrar por aí. Não fica favorecido nas fotografias.
Parece olhar mas para dentro. Doutorou-se em literatura medieval. Dá aulas numa universidade de Lisboa. Publica há 38 anos: 31 livros de poesia, 13 livros de ficção, 10 de ensaios, 2 de teatro...

Chama-se Nuno Júdice.
É dele este poema, retirado do livro MEDITAÇÃO SOBRE RUÍNAS





A Voz que Nos Rasgou por Dentro



De onde vem - a voz que
nos rasgou por dentro, que
trouxe consigo a chuva negra
do outono, que fugiu por
entre névoas e campos
devorados pela erva?


Esteve aqui — aqui dentro
de nós, como se sempre aqui
tivesse estado; e não a
ouvimos, como se não nos
falasse desde sempre,
aqui, dentro de nós.


E agora que a queremos ouvir,
como se a tivéssemos re-
conhecido outrora, onde está? A voz
que dança de noite, no inverno,
sem luz nem eco, enquanto
segura pela mão o fio
obscuro do horizonte.


Diz: "Não chores o que te espera,
nem desças já pela margem
do rio derradeiro. Respira,
numa breve inspiração, o cheiro
da resina, nos bosques, e
o sopro húmido dos versos."

Como se a ouvíssemos.

Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas"


Foto Méon



16.10.10

POEMA PARA ESTA TARDE






CONSTRUÇÕES


Prendo-me a uma coisa simples. Pode
ser o teu rosto naquele vidro, que eu vi
e não mais esqueci.

Faço do tempo um parapeito. E
debruço-me nele, à tua espera, sentindo
na madeira o calor do teu peito.

Ergo na areia um castelo de enigmas. E
fecho-te na sua torre, a castelã que me ensinou
a entrar sem saber por onde sair.

(Mas para que hei de sair
de onde quero ficar?)


Nuno Júdice,
Geometria Variável
Public Dom Quixote, Lx, 2005

14.10.10

Hino aos mineiros do chile

Comovidamente! Testemunho emocionante dos alentejanos da Damaia, hoje, em homenagem aos mineiros do Chile.

É o Hino dos Mineiros!

BEM VINDOS À VIDA!




Venerando Matos, no seu blogue PEDRAS ROLANTES, publicou este belíssimo texto. Diz tudo o que gostaríamos de saber dizer. Aqui o transcrevo, com autorização do autor, a quem muito agradeço. RENASCER!

«Há momentos assim, em que a humanidade põe de lado as suas divergências para se unir numa causa comum.
Uma das ocasiões de que me recordo foi quando do resgate dos astronautas do Apolo 13, nos idos de 1970. Até as rivalidades da “Guerra Fria” foram momentaneamente abandonadas, para colocar toda a tecnologia e conhecimento humano ao serviço da salvação dos astronautas.

É a recordação desse acontecimento que me vem hoje à memória, perante a emoção global que segue o resgate dos mineiros chilenos.
No momento em que escrevo estas palavras, já foram resgatados 8 mineiros. Vão ser mais de 24 horas de comunhão entre toda a humanidade.

Este desgraçado século XXI, marcado pela violência política, social e económica, bem precisa de verdadeiros heróis que sejam um exemplo de humanidade e esperança.

A forma como esse grupo de 33 homens humildes, pobres, alguns com fraca escolaridade, se têm comportado e organizado para enfrentar a adversidade pela qual estão a passar é um grande exemplo de humanidade, num mundo dirigido por líderes ignorantes, arrogantes e incompetentes (as excepções são um Obama, um Lula…e não me lembro de mais nenhum!).

Num mundo em regressão social e política, onde os que tinham a obrigação de encontrar soluções para o beco sem saída em que este século se está a tornar se preocupam apenas com os seus negócios pessoais e das clientelas, aqueles 33 homens e a vasta equipa de resgate que os apoia, dão-nos a todos um uma réstia de esperança nesta humanidade, que tem sido tão maltratada pelos poderosos.

Infelizmente esta é uma sociedade que premeia a falta de escrúpulos, as negociatas, a ganância ou a pura sorte dos casinos. Não há lugar para os verdadeiros heróis.

O século XXI precisa de heróis humanos e estes 33 homens, bem como a incansável equipa de salvamento, simbolizam os primeiros verdadeiros heróis do século.

Naquele local do Chile concentra-se tudo o que a humanidade ainda tem de Bom: a solidariedade, o empenho de técnicos, médicos e bombeiros; a aplicação da técnica, da ciência e da medicina, colocadas ao serviço da humanidade.

Se houvesse verdadeira justiça, se este mundo seguisse os bons exemplos da antiga Grécia, estes homens e as suas famílias teriam um futuro garantido sem preocupações económicas e sociais e deviam correr o mudo para espalhar o seu exemplo.

Tal como esses homens estão a renascer hora a hora, também o Mundo e a Humanidade precisam de um Novo Renascimento.»

10.10.10

PASSEANDO NO OESTE

O caminhante levantou-se cedinho, foi à janela e viu a manhã romper com céu limpo. Na rua já passavam carrinhas com caçadores mas a caça dele era diferente: paisagens, aldeias, ruralidades diversas. Imagens do olhar.
Entrou na Rota da Luz com mais duas dúzias de companheiros, alguns deles vindos de longe. Andar a pé. Caminhar. Sentir a variedade de pisos, ora terra batida e endurecida de caminhos novos, ora as quelhas barrentas e enlameadas. Caminhos de pé posto ou veredas de acesso às vinhas. Caminhar, olhar, cheirar, ouvir. Os citadinos regressam aos contos dos avós, redescobrem as rugas no rosto de antigas aldeias, param a tomar a temperatura destes ares inesperadamente luminosos.



Um percurso de 23 km,  com paragens para abastecimento e logística pesoal...
Ponto de partida e de chegada: Carvoeira, sede de freguesia do concelho de Torres Vedras. Passagem por Aldeia de Nª Srª da Glória, Serra de S. Julião, Curvel, A-da-Rainha, Carreiras, Almagra e Zibreira. Organização da Associação de Marchas e Passeios do Concelho de Torres Vedras.






Igreja de Nossa Senhora da Luz, Carvoeira. 
O inesgotável ouro do século XVIII, a semear templos como este.

Uma cumeada! Descobrir o vale que vai de Matacães  à Zurrigueira!
Beleza paisagística inversamente proporcional à fealdade dos topónimos... 



A bica de água da Serra de S. Julião. Fresca, fresca! 

O velho choupal dos Cucos pintado de outono, a fechar o regresso. Ah!


Nem de propósito: alguém me envia excertos de uma entrevista de Gonçalo Ribeiro Teles ao Público de hoje. Palavras sábias sobre o mundo rural, que me encontram mais desperto para esta realidade. Hoje, que calquei caminhos diferentes, ao sol e à chuva, mais próximo desse mundo distante que esqueço tanto mas de que tanto dependo e necessito.

"O mundo urbano não vingará se não tiver o equilíbrio e a contrapartida do mundo rural. E o mundo rural não é exclusivamente uma coisa de passarinhos ou de flores ou de um charquinho aqui e outro ali para defender as rãs. É toda uma coesão tão importante como a coesão do edificado".



"[Os principais problemas são] o desconhecimento da nossa paisagem pelos responsáveis. E a pouca importância que dão ao desenvolvimento rural por considerarem que é uma coisa para acabar"


"O mundo rural não é uma forma técnica de explorar o solo, mas uma forma cultural do uso da terra que se procura na perpetuidade, para que não surjam modas que façam desaparecer todo o resto. É um mundo de cultura, de conhecimento e que, portanto, é necessário manter e desenvolver (...) O problema é os políticos terem-se fartado das pessoas do campo"

7.10.10

MÁRIO VARGAS LLOSA

Nobel da Literatura 2010.
Velho representante da pujante escola romancista sul-americana. Homem que escreve mas que também se empenha nas lutas políticas do seu tempo. Como se dizia antigamente: "engagé"! Sem medo de meter as mãos na massa humana. Escreve, vive, corre riscos. Não há muitos escritores assim.


Li há muitos anos "Conversa na Catedral", que me impressionou, mas não voltei a ler nada dele, até porque a sua viragem à direita me desiludiu. Ele, que tanto tinha denunciado os ditadores e lutara pela liberdade...
Mas, quem sabe? Talvez as derivas totalitárias dos regimes de esquerda tenham influenciado as suas opções políticas...
Mais à esquerda ou mais à direita, permanece a literatura, território que não deve nem pode ser neutral. Mas que pode criar outros territórios onde seja possível o encontro de todos os homens que não se limitam a sobreviver.

6.10.10

IMAGEM CRUEL...

... mas oportuna! Antero Valério em toda a sua pujança criativa e crítica!

José Relvas não saberia viver na República de hoje, sob uma tal bandeira...

5.10.10

HONRA E GLÓRIA



Retrato a óleo, autoria de Asterio Mananoz, 1913



...o«»o...

Nasci em Alpiarça, terra onde viveu José Relvas, e desde miúdo que ouço falar dele. A sua Casa dos Patudos foi o primeiro museu que visitei. E se a distância geracional e um certo preconceito anti-aristocrático me afastaram dele, agora, aos poucos, tenho vindo a reconhecer a dimensão deste homem.

Li a suas "Memórias Politicas", publicadas em 1977; o belíssimo Catálogo da Exposição que lhe foi dedicada em 2008, na Assembleia da República, com o título "O Conspirador Contemplativo"; e mais recentemente a não menos bela "Fotobiografia" de José Raimundo Noras, Imagens & Letras, 2009.

 Arreigou-se, assim, no meu espírito, a convicção de que José Relvas foi um dos maiores vultos da 1ª República cujo perfil é necessário conhecer melhor. Não se pode entender o 5 de Outubro sem ler as páginas pormenorizadas que ele escreveu, as opiniões sensatas sobre os muitos intervenientes, as críticas e censuras que expendeu. Recorde-se que J Relvas escreveu as Memórias com o intuito de que só fossem publicadas depois de 1990, na intenção clara de não  magoar vivos nem descendentes próximos nas apreciações que sentiu dever fazer.
Foram publicadas em 1977, pelo critério aceitável de que já muito tempo passara e não se desvirtuava a intenção do autor.

José Relvas foi talvez o homem que mais arriscou nos dias da Revolução. Tinha mulher e três filhos, uma casa magnífica, acabada de construir,  grandes propriedades agrícolas, ascendência aristocrática. Porque se meteu nesta aventura?
É aqui que deixo o repto: conheçam melhor este homem e a sua vida. Encontrarão os traços de um carácter recto e impoluto, e também a marca de uma tragédia familiar que o não derrubou - nenhum dos filhos lhe sobreviveu.
E depois vão até Alpiarça conhecer o extraordinário legado que lá deixou.
Hoje, 5 de Outubro de 2010: honra e glória a José Relvas!.




José Relvas, membro do Directório republicano, proclama a República na varanda da Câmara Municipal de Lisboa

3.10.10

LUZ - SILÊNCIO



SILENCIOSO, AGORA

Quero quedar-me silencioso, agora,
neste espaço inteiro onde brilham asas,
porque a terra agora tem um só sentido
e a construção se ergue e amplifica.

Quero estar calado neste fim de tarde,
neste breve rosto, nesta luz e luz,
como um beijo longo que nos lembre sempre
um súbito rumor que nos perturbe.

Quero, quero, quero estar contigo
neste só silêncio que nos vê e atrai,
nesta hora escassa em que o céu acorda
e não se morre nunca e não se morre mais.

Quero, sim, quero ficar quieto
nesta bruma ou brisa, nesta lua ou mágoa
de branda textura, em que se adivinha
este cais de espuma, de mistério e água.

João Rui de Sousa, O FOGO REPARTIDO

Foto Méon, Mosteiro de Alcobaça

A IRA DO ALTÍSSIMO


Cada vez me sinto mais perplexo. Há um ruído continuo de culpabilização, como se a situação que vivemos fosse resultante directa de pecados mortais que não cessamos de cometer. E de que agora sofremos o castigo. Merecido! - dizem-nos.
A ira de deus desaba, fulminante, sobre as nossas cabeças. Sodoma e Gomorra, choro e ranger de dentes.
Nós, povo, que trabalhamos, que pagamos impostos, que consumimos o que nos é proposto para que a economia não pare, de repente somos os grandes e únicos  culpados da bancarrota iminente. "Consumimos de mais"... "gastámos mais do que o que produzimos"...  "Construímos mais de um milhão de casas que agora estão vazias ou por vender"... "Deixámos desertificar Lisboa e o interior beirão" ... "Abatemos centenas de traineiras de pesca"... "Exigimos melhores salários que levaram ao fecho de centenas de empresas"... "Entupimos os hospitais por causa de simples dores de garganta"...

Pecámos e continuamos a pecar. Muito! E reincidimos, não nos emendamos. Que admira, pois, a ira divina dos mercados, a paciência esgotada dos deuses credores, a penitência imposta pelo Banco Central Europeu?
Eia, pois, ó pobres pecadores deste vale de lágrimas! Aplacai essa ira terrível.  Cubri de cinzas a cabeça, vesti túnicas de burel, arrastai-vos até ao trono do altíssimo. Penai as vossas culpas, ó impiedosos carrascos do nosso deus tão ofendido! Dormi na palha, guardai castidade, fazei jejum.
Talvez assim venhais a merecer a divina misericórdia...

Dez pai-nossos e dez avé-marias! E o terço todos os dias!

2.10.10

HOJE VI UM ESTRANHO MONUMENTO NACIONAL!

Andava há tempos para fazer uma pequena incursão por terras do Maxial, aldeia de Ermegeira. Pois não é lá que se situa um dos nove Monumentos Nacionais de Torres Vedras?
Perguntei a muita gente e ninguém me sabia dizer onde ficava exactamente esse famoso monumento.
De que se trata afinal? O site do IGESPAR elucida: «Gruta artificial da época calcolítica».

O sítio foi encontrado em finais dos anos 30 do séc. XX, possivelmente em trabalhos agrícolas. E logo acorreram os arqueólogos da "Junta de Escavações e Antiguidades", recentemente constituída. Dela fazia parte o Dr. Manuel Heleno, director do Museu Etnológico Leite de Vasconcelos, em Belém, e professor da Faculdade de Letras de Lisboa.
A época calcolítica situa-se mais ou menos entre 4000 e 2500 anos a. C. e é caracterizada pelo início do uso dos metais, desenvolvimento da cerâmica e outras pequenas indústrias como a cestaria e a tecelagem, e crescente diferenciação social. É também uma época em que se evidenciam os primeiros sinais de contactos das populações autótones com visitantes casuais, chegados por mar, vindos do Mediterrâneo Oriental. O Castro do Zambujal é outro exemplo deste período da pré-História na nossa região.
Os poucos vestígios encontrados, de que se destacam fragmentos de cerâmica campaniforme e os pendentes de ouro guardados na Casa Forte do Museu de Belém, não retiram importância a este monumento funerário, uma gruta artificial rasgada em argila compacta, para enterramentos colectivos. Mais de 4 000 anos nos separam da sua construção pelo que não é de admirar que só reste uma pequena parte da abóbada.


A pequena gruta situa-se no cômoro que se vê antes da antiga fábrica de tijolo.


O resto da gruta terá sido destruída com a abertura do velho caminho que serve os terrenos agrícolas.

O Emílio Correia, que nos levou lá, depois de contactar com o proprietário.

Foi preciso calcar as ervas que tapavam quase por completo a parede da gruta.

 Nunca seríamos capazes de encontrar o local sem o auxílio de um dos seus proprietários, o senhor Manuel Pinheiro, da Quinta de Entrecampos, previamente contactado pelo amigo Emílio.

O sítio foi declarado Monumento Nacional por três Decretos dos anos 40.

1.10.10

QUE FAZER?



Faz-me muita impressão a confusão de planos. Não é possível pensar a economia nacional desligada da economia mundial. Mas continuamos a pensar nela como um círculo fechado.

Depois vemos os irlandeses a barafustar, os espanhóis a gritar, os gregos a enfurecerem-se, os alemães a reagirem, os belgas a esgatanharem-se... e os africanos a morrerem de fome! - e não conseguimos tirar conclusões.
Pensamos curto, demasiado curto, num mundo tão extenso!
Por isso duvido da solução, de qualquer solução nacional.
Pois se até os antigos baluartes do internacionalismo são de um nacionalismo doentio...