21.12.07

Aos meus amigos...



...um abraço do tamanho dos dias que não estarei aqui.
Até lá para começos de Janeiro...
E que nas vossas vidas não surjam pedras intransponíveis!




Quanto ao Natal... estamos conversados!
Uma saudação à escola que me emprestou este desenho!

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.




Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.





Carlos Drummond de Andrade

20.12.07

PEQUENA VALSA VIENENSE



Descobri na minha biblioteca caseira o "Romanceiro Gitano" com o poema de Federico Garcia Lorca que Leonard Cohen canta em inglês, numa tradução livremente poética - parece-me.
Belíssimo. Não resisto a deixá-lo aqui. (Embora não goste de algumas opções da tradução brasileira. Será que alguém tem o original?...)
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PEQUENA VALSA VIENENSE

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Em Viena há dez mocinhas,
um ombro em que soluça a morte
e um bosque de pombas dissecadas.
Há um fragmento da manhã
no museu da geada.
Há um salão com mil janelas.
Ai, ai, ai, ai!
Toma esta valsa com a boca fechada.
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Esta valsa, esta valsa, esta valsa,
de sim, de morte e de conhaque
Que molha sua cauda no mar.
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Quero-te, quero-te, quero-te,
com a poltrona e o livro morto,
pelo melancólico corredor,
no escuro desvão do lírio,
em nossa cama da lua
e na dança com que sonha a tartaruga.
Ai, ai, ai, ai!
Toma esta valsa de quebrada cintura.
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Em Viena há quatro espelhos
onde brincam tua boca e os ecos.
Há uma morte para piano
que pinta de azul os rapazes.
Há mendigos pelos telhados.
Há frescas grinaldas de pranto.
Ai, ai, ai, ai!
Toma esta valsa que está morrendo em meus braços.
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Porque te quero, te quero, meu amor,
no desvão onde brincam os meninos,
sonhando velhas luzes da Hungria
pelos rumores da tarde tíbia,
vendo ovelhas e lírios de neve
pelo silêncio escuro de tua fronte.
Ai, ai, ai, ai!
Toma esta valsa do "Quero-te sempre".
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Em Viena dançarei contigo
com um disfarce que tenha
cabeça de rio.
Olha que margens tenho de jacintos!
Deixarei minha boca entre tuas pernas,
minha alma em fotografias e açucenas,
e nas ondas escuras do teu andar
quero, meu amor, meu amor, deixar,
violino e sepulcro, as cintas da valsa.
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(ROMANCEIRO GITANO E OUTROS POEMAS
Federico G. Lorca;Tradução de Oscar Mendes, , 3ª ed,
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro,1985.)
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Irritantemente - ou por falta de engenho meu!... -na passagem
ao "publicar postagem" o texto perde os espaços
entre os blocos ou entre as estrofes.
Ainda não sei resolver este problema... Experimentei pôr tracejado.
Solução canhestra, confesso...



19.12.07

Ainda Leonard Cohen

Canção magnífica!
Junto "a letra" para ajudar a ouvir melhor...

Take this waltz

Now in vienna theres ten pretty women
Theres a shoulder where death comes to cry
Theres a lobby with nine hundred windows
Theres a tree where the doves go to die
Theres a piece that was torn from the morning
And it hangs in the gallery of frost
Ay, ay, ay, ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz with the clamp on its jaws

Oh I want you, I want you, I want you
On a chair with a dead magazine
In the cave at the tip of the lily
In some hallways where loves never been
On a bed where the moon has been sweating
In a cry filled with footsteps and sand
Ay, ay, ay, ay
Take this waltz, take this waltz
Take its broken waist in your hand

This waltz, this waltz, this waltz, this waltz
With its very own breath of brandy and death
Dragging its tail in the sea

Theres a concert hall in vienna
Where your mouth had a thousand reviews
Theres a bar where the boys have stopped talking
Theyve been sentenced to death by the blues
Ah, but who is it climbs to your picture
With a garland of freshly cut tears?
Ay, ay, ay, ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz its been dying for years

Theres an attic where children are playing
Where Ive got to lie down with you soon
In a dream of hungarian lanterns
In the mist of some sweet afternoon
And Ill see what youve chained to your sorrow
All your sheep and your lilies of snow
Ay, ay, ay, ay
Take this waltz, take this waltz
With its Ill never forget you, you know!

This waltz, this waltz, this waltz, this waltz ...
And Ill dance with you in vienna
Ill be wearing a rivers disguise
The hyacinth wild on my shoulder,
My mouth on the dew of your thighs
And Ill bury my soul in a scrapbook,
With the photographs there, and the moss
And Ill yield to the flood of your beauty
My cheap violin and my cross
And youll carry me down on your dancing
To the pools that you lift on your wrist
Oh my love, oh my love
Take this waltz, take this waltz
Its yours now. its all that there is.

take this waltz leonard cohen

Saudação aos meus amigos que aqui vêm ao meu encontro. Especial à minha amiga das violetas...

QUE...




João amava Teresa
que amava Raimundo
que amava Maria
que amava Joaquim
que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos,
Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre,
Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se
e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


Carlos Drummond de Andrade

O pobre do nosso chafariz medieval continua ao abandono. Para ele nunca mais chega o Natal!...

DESENCONTRO



Só quem procura sabe como há ruas
sem nada nem ninguém quando por elas
vamos às cegas, insistindo em vê-las
à luz de um só olhar onde flutua


a imagem ausente e a mais crua
solidão deste mundo, ao ver tão belas
as figuras que à tarde passam nelas
sem haver nada às vezes que destrua


o primeiro dos sonhos, a quimera
que sem razão nos faz ficar à espera
de tudo o que ao telefone prometia


o nosso amor, a sombra de uma voz.
Sabendo ouvi-la, nunca estamos sós
a no deserto achamos companhia.


(Fernando Pinto do Amaral, in: Acédia)

18.12.07

Natal de Miguel Torga

Casa onde Miguel Torga passou a infância ( S. Martinho de Anta, Sabrosa, Distr. Vila Real)








NATAL (1952)

Natal fora da casa de meu Pai,
Longe da manjedoira onde nasci.
Neve branca também, mas que não cai
Na telha-vã da infância que perdi.

Filosofias sobre a eternidade;
Lareiras de salão, civilizadas;
E eu a tremer de frio e de saudade
Por memórias em mim quase apagadas…













A mesma casa, restaurada pelo poeta, onde normalmente passava o Natal.






17.12.07


« On naît parmi les hommes,
on meurt inconsolé parmi les dieux»
(René Char)




Em duas linhas, toda a condição humana. Não se trata de uma interpretação. Tudo se diz no rigor e na concisão, perfeição das coisas definitivas.

15.12.07

NO FECHO DO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA


Sobre a ponte insegura é que é passar!
Fica o rio a corre dentro das veias.
Quanta angústia levar,
Quantas areias
De oiro
Ou de ilusão,
É como se nos fossem afogar
A inquietação.

Arcos de ferro ou de granito
E sólidos soalhos de varanda
Não me parecem piso de quem anda
A descobrir as formas imprecisas
Desta humana aventura.
Só de credo na boca vale a pena
Olhar a vida, que da sepultura
Nos acena.


Miguel Torga





12.12.07

É ASSIM QUE ME SINTO !!!


Tive um professor no Liceu de Santarém que gostava de repetir esta piada: «Os portugueses são as pessoas mais felizes do mundo: não precisam de pensar! Têm quem pense por elas!»


Atenção: Estava-se nos anos 60 do século passado, governava-nos o Salazar - com a PIDE a ajudar!




Veio Abril de 1974, começou a trabalheira! Os portugueses foram obrigados a pensar!


Agora, trinta e três anos depois, estão cansados! Uff! Isto da democracia é muito bonito mas dá cabo das costas, faz doer a cabeça, cria ansiedade. Então não é muito melhor arranjar quem pense por nós?




O Sócrates mai-la D. Lurdes Rodrigues mai-los piões de brega Lemos e Pedreira já descobriram: as escolas não funcionam porque aquela malta que dá aulas passa a vida a pensar. O sucesso escolar ressente-se disso, é claro. Portanto, a solução é contratar alguém que pense e decida. E com muita firmeza, muita liderança. Se tiver "carisma" é melhor ainda!
O Senhor Director!


Apetece-me afogar num bidon de gasolina!




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NA ESCOLA-DOS-DIRECTORES:




- O Senhor Director está muito ocupado, só pode recebê-lo para a semana!
- Não insista! O Senhor Director está em reunião!!


- Irei informar o Senhor Director...


- O Senhor Director não vai gostar quando souber dessa sua atitude!


- O Senhor Director mandou chamá-lo!


- O Senhor Director já pediu esse relatório há três dias!


- Tem de ir depressa porque o Senhor Director vai já para Lisboa!


- Cuidado! Já chegou o senhor Director!


- Sim... Sim.... Concordo... o Senhor Director é que sabe...




Era assim, não me esqueci. Comecei a dar aulas em 1971, no tempo dos directores...

11.12.07

OUTONO



"À medida que conquistamos a maturidade tornamo-nos mais jovens. Comigo passa-se isso mesmo... pois mantive sempre o mesmo sentimento perante a vida desde os anos de rapaz; nunca deixei de encarar a minha vida adulta e o envelhecimento como uma espécie de comédia."




Hermann Hesse, in Elogio da Velhice, Difel, Lx, 2002



TESTEMUNHA


"Porque o seu poder, descobriria mais tarde, era um poder sinistro e fatal. Uma vez, muito tempo depois, o meu marido disse-me que esse homem significava, na sua vida, «a testemunha». Esforçou-se nessa explicação. Dizia que cada homem tem, na sua vida, uma testemunha, uma pessoa mais forte que se lhe deparou na juventude, e que, por isso, todos procuramos esconder, aos olhos deste juiz implacável, o que haja de desonroso dentro de nós. A testemunha não confia em nós. Sabe de nós o que mais ninguém sabe. Tornemo-nos ministros, ou conquistemos o Prémio Nobel, a testemunha sorri, simplesmente. Tu acreditas nisso?..."
(in: A Mulher Certa, Sándor Marai)
Esta passagem impressionou-me. Ruy Belo em vários dos seus poemas fala no fenómeno que consiste em "sentirmo-nos olhados" por alguém. Por Deus? - como também se diz num poema de Sophia de MB Andresen. E neste caso o sentimento de culpa e de pecado viria daqui, como também viria o seu oposto: o conforto de sermos protegidos por alguém superior a nós.
Mas quem ama sente também que a lembrança do ser amado é como um intenso olhar que nos segue e anula a solidão.

10.12.07

MARCO AURÉLIO



Imperador Romano entre os anos 161 e 180. Atraído pela doutrina estóica, deixou alguns escritos que mantêm toda a actualidade.

De vez em quando gosto de parar numa página dos "Pensamentos". Por exemplo:


"Lembra-te que, quem quer que se aflige com o que lhe acontece ou o acolhe de má vontade, assemelha-se ao porquinho que escoceia e grunhe quando o sacrificam. A mesma coisa faz o homem que, deitado no seu leito, na solidão e no silêncio, deplora as suas limitações. Lembra-te então que só o ser racional recebeu o poder de seguir os acontecimentos de bom grado. Quanto a segui-los de bom grado, é uma necessidade para todos."

9.12.07

TRINTA ANOS DEPOIS...



Vieira Calado chegou-me por mão amiga, já lá vão trinta anos. Guardei os livrinhos ( na altura chamavam-se "plaquettes") até hoje. Numa arrumação recente encontrei-os no meio de muitos outros. Hoje mostro este.
O outro, intitulado "Poema Para Hoje" , fica para... outro dia!
O seu conteúdo é curioso. Pouco tem de "poesia" no sentido que lhe dou comummente. É um pequeno objecto que resulta do espanto do seu autor perante um universo de milhares de milhões de sóis, de galáxias, de células... milhões... triliões... Números que ele repete exaustivamente, confrontando-os no final com a singularidade da sua própria existência:




...e cada sol milhões de cometas planetóides e planetas


e cada planeta milhões e milhões de homens




um dos quais é capaz de ser eu


ou um outro qualquer


ateu


Imagino o trabalho que deu o fabrico deste objecto / livro, que tem as seis páginas dispostas de modo engenhoso, com um pequeno texto que deslisa debaixo da última página. Ah! E tem igualmente duas gravuras do autor!

O autor merece o trabalho que tive a "scanear" tudo!
Para ele, visitante regular deste espaço, o meu reconhecimento. Trinta anos depois!

8.12.07

FRÁGIL



Terror de te amar
num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa


Sophia de Mello Breyner Andresen

ANIVERSÁRIO


Amiga de muitos anos, T. aniversariou ontem. Juntou companheiros de viagem e fez festa. Na quentura dos afectos, deixou que as horas crescessem, convívio partilhado à volta da mesa.


Vi rostos desconhecidos, outros bem familiares. Alguns já esperados, outros de surpresa. Foi bom estar ali até o dia já ser outro e nós sairmos para o nevoeiro com os olhos saciados de ternuras.


Trouxemos um cartão com palavras doces:




Nesta etapa avançada do percurso, acumulamos muitas coisas importantes e saborosas resultantes da nossa vivência, agregamos outras trazidas de outras gerações, misturamos a sabedoria de muitos anos vividos e guardamos tudo com muito carinho na estante do nosso coração.

7.12.07

DANIEL FARIA


Escreveu sobre as moradas onde habitou e os caminhos breves que percorreu. Interrogou todos os silêncios, num diálogo interior que deixou milhares de palavras pelo chão antes de se ir embora. Aos 28 anos.


Os seus poemas estão reunidos num volume de 430 páginas publicado ed. Quasi.


Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão
(Daniel Faria)

Para saber mais: AQUI

5.12.07



A OSTRA

A ostra, com os peixes conversando,
Não teve mão em si que não dissesse:
-- Que vida preciosa, a minha! Quem merece
mais cuidados do que eu? Sabei que mil fulgores
se me acumulam nas entranhas…
crio jóias sem par… jóias estranhas…
numa palavra: pérolas, senhores!

O céu, o mar, os astros,
Solícitos, de rastros,
Vêm ofertar-me as suas cores.
Tenho dentro de mim reflexos diamantinos
E cristalinos… argentinos…
Cintilações… lucilações a esmo,
Enfim, é o mesmo
Que dar à luz o Sol! Talvez melhor, a Lua.

-- Ah (um peixe responde), ouvi dizer
Que até te comem crua!

João Cabral do Nascimento
Obrigado ao meu amigo Cid Simões, visitante atento desta página, que me enviou este poema.

VINICIUS DE MORAES



Quando andava na Faculdade vivi dois anos numa residência universitária. O meu colega de quarto, Telmo, costumava ouvir um LP de Vinicius de Morais que tinha dois poemas de que eu gostava muito. Um deles era o conhecido "Porque hoje é sábado".
O outro é este que eu já não via há muito e que encontrei hoje casualmente.
É longo mas muito expressivo, "carregado de quotidiano", como costumava dizer o autor.




Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.




Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina




Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.




Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.




Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.




Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...




Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!




Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.




Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.




Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.




E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!




Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!




Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.




Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.




Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.




Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.



Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.




Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.




Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.




Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.




Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.




Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.




Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!





Vinicius de Moraes

4.12.07

De novo Sándor Márai


Romance húngaro do autor de As Velas Ardem Até Ao Fim, igualmente com tradução do nosso melhor "magiarista", Ernesto Rodrigues. Ei-lo, trazido por ALGUÉM que vive o natal todos os dias.
Vai andar debaixo do braço por estes tempos mais próximos...

EU VI




Um amigo enviou-me este belíssimo texto. Poderia guardá-lo na gaveta, só para mim?




Eu vi crianças deitadas em modestos caixões. Eram pequeninas como eu era então. Condiscípulas da mesma escola estilo «Estado Novo», no topo da colina, a igrejinha ao pé. Sentavam-se ao fundo, ou à frente, de salas geladas, em secretárias duras como pedra, os tinteiros nos tampos, um pobre caderno em cima, os pezinhos frios, a cabeça a tombar com o sono, o frio, a fome. Eu via-as depois em féretros de pinho. Morriam com o sarampo, pneumonia, meningite, de qualquer coisa. Ia vê-las com os demais companheiros, e ficava absorto, sem compreender. O que era a morte? Não sabia.Não recordo o funeral do meu irmãozinho, de quatro anos, nem das brincadeiras comuns que ambos seguramente fazíamos. Guardo uma imagem vaga da minha mãe chorando silenciosamente, uma caminha, a dele, nela deitado, não me lembro. Apenas uma sentimento de injustiça e uma ideia nebulosa de justiça.




Vi o meu pai saindo porta fora, provavelmente com lágrimas nos olhos, disseram-me depois que estava preso muito longe, num forte com muros altos, castigado pelo comando da tropa, não soube porquê, mas senti uma profunda revolta, que foi a raiz, e a chama com que incendiei as minhas ideias.




Vi uma mulher, parecia jovem sob os farrapos, caída na rua, debaixo de um fardo de tábuas demasiado pesado para ela. Há quantas horas trabalhava nisso? que comera? Vi que ninguém a levantou, lhe deu a mão. Eu dei. E mais os vinte escudos que eram toda a minha fortuna.




Eu vi em terras africanas, longe da cidade, um grupo de homens brancos a tentar violar uns miúdos negros, fosse a gozar, fosse a sério, porque riam, gargalhavam, brutais, feios e porcos. E meteu-se em mim uma vontade de lhes bater, espancar, desfazer. Tirei o cinto mas não me atrevi. Era um miúdo. A chama que incendiava as minhas ideias ficou mais acesa.




Eu vi, passando na estrada, centenas, talvez milhares, de operários pedalando fracas bicicletas a caminho das fábricas, pedalando, pedalando, pela aurora, pelo crepusculo, com casacos mal talhados, de sarja pobre, sob a chuva, sob os ventos, com uma malga de caldo no estômago, talvez um bagaço. Ficou mais forte a minha chama. O que quer que fosse a justiça era assunto que me perseguia. Eu vi como muitos fugiam e os coelhos eram mais bravos.




Eu vi como a cobardia é coisa comum e a vergonha raramente a acompanha. Eu vi como um colega se torna delator, como um companheiro fura uma greve, como um estudante engraxa um mestre, como a traição se insinua como um réptil numa relação, como um homem ou mulher tem um preço, não porque trabalha, mas para que roube, engane, trepe mais uma tarimba, conquiste mais uns galões.




Eu vi um povo quase todo adormecido, estupidificado, silencioso, rude, maldoso, acobardado. Mas vi a valentia de camponeses do Alentejo, de operários de algumas fábricas. E a minha chama ficou a arder.




E vi-te. Um pedaço de céu a andar dançando abrindo as águas, uma onda suave e branda, um sopro de brisa numa manhã de Abril, um riso dando música a uma tarde morna de setembro. Meu amor.
janp

3.12.07



Terrível é o homem em quem o senhor
desmaiou o olhar furtivo das searas
ou reclinou a cabeça
ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina
Não há conspiração de folhas que recolha
a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro
quando caminha pela tarde acima
A morte é a grande palavra para esse homem
não há outra que o diga a ele próprio
É terrível ter o destino
da onda anónima morta na praia


Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates

GATO FEDORENTO

Ontem não tive ocasião para ver o GATO FEDORENTO.
Não resisto a lincá-lo aqui:

http://videos.sapo.pt/nMsgBMzWang1M56RoV4k

2.12.07

PARA SEMPRE


No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta

triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates

1.12.07

PARTILHAR




Há muitas coisas que eu gostaria de saber fazer e não sou capaz. E nem é preciso falar de correr a Maratona ou escrever romances de 600 páginas todos os anos. Coisas mais simples, como escrever sobre a actualidade com base em boa informação, tomar posição com senso e equilíbrio, escrever bem para comunicar melhor.
Tudo isso encontro neste espaço que me habituei a frequentar- como professor, mas não só. Como gosto de partilhar com os amigos, aqui fica a sugestão.




1º De Dezembro! Lá está o monumento aos "Restauradores", em Lisboa. E lá virão os discursos da praxe.
Tudo bem. Mas às vezes ponho-me a pensar. (Só às vezes... como é notório!)
Por exemplo: a questão do Kosovo! Este mês terá de ser resolvida. Muitos países europeus já disseram que vão reconhecer a declaração da independência deste território. Mas a Sérvia não aceita e está disposta a tudo, inclusivamente a começar nova guerra. Nós, cá de longe, ao fim de uma semana de notícias de atentados, sangue, bombardeamentos, etc, começamos a ficar enjoados. - "Estes gajos são estúpidos... andam a matar-se p'ra quê? Fartinho disto... Ó Sandra, muda aí p'ró canal Panda!"
Por exemplo: e se... a Espanha resolvesse anexar este pedaço que tanta falta lhe faz para compor o desenho da Península Ibérica? ( já viram bem o mapa da Espanha? Aquele vazio à esquerda é altamente inestético!) Que é que nós faríamos?
Claro, a última coisa coisa que os "espanhas" quereriam é este rectângulo pejado de chulos e de centros comerciais - o maior «ratio» por habitante na Europa! Mas se acontecesse uma anexação, lá estríamos nós de armas de mão, lá se iria o nosso pacifismo, lá voltaríamos nós a deitar miguéis de vasconcelos pelas janelas fora...
É assim a História.
Viva D. João IV! Abaixo o Filipe! Duquesa de Mãntua p´rá rua! Morte aos traidores!
(Veja-se no que dá a gente pôr-se a pensar. ... quando nem há gaivotas em terra...)