30.9.10

UM POETA A RELER

Affonso Romano de Sant'Anna, poeta brasileiro da nossa contemporaneidade. Da geração de Ferreira Gullar, por exemplo.
Um poeta a reler.

 Um poema dele foi-me enviado há dias pelo meu amigo Cid Simões, a quem agradeço a lembrança.
Poema que vem muito a propósito dos tempos que estamos vivendo.



A Implosão da Mentira
ou
o Episódio do Riocentro


Fragmento 1

Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
Fragmento 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.

E assim cada qual
mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical? mente,
mente incontinente? mente,
mente hereditária? mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
-diária/mente.

Affonso Romano Sant’Anna
in:  Política e Paixão (1984) 

MANGUITO OUTRA VEZ!

Ontem quando aqui pus a célebre e expressiva foto de Fernando Assis Pacheco já estava a adivinhar o que aí vinha.
Hoje, ao ler calmamente a lista das famosas "medidas" para enfrentar a crise dei por mim a cogitar. E fui escrevendo a um amigo que vive muito longe - em Macau! - mas que se mantém atento, cidadão do mundo que sempre foi.
Ao mesmo tempo que ia fazendo manguitos mentais...



«Andavam a avisar-nos há muito tempo.
Este é o mundo em que vivemos. De um lado os cidadãos comuns, como tu e eu; do outro, esse mundo tenebrosamente oculto, os grupos financeiros, os "mercados", que constroem megalópolis em Xangai e nos emiratos do petróleo… 
Mercados - eufemismo ridículo! –  que andaram anos e anos a incentivar o consumo desenfreado,  encorajando empréstimos a toda a gente porque isso lhes garantia lucros fabulosos e que fecham a torneira agora porque os cidadãos/credores deixaram de poder pagar e eles já nem sabem o que fazer a tanto dinheiro ganho.

Na China e na Índia milhões de assalariados,  mal pagos e sem protecção social,   continuam a produzir bens de consumo a ritmos demenciais, ajudando a destruir as relações de produção em países onde os trabalhadores conseguiram melhores condições de trabalho. Quem está por trás deste produtivismo desenfreado? Os tais grupos financeiros que mandam nos tais mercados...

É o capitalismo à escala mundial, um polvo de tais proporções que ninguém parece ter receitas para dominar. Até porque também nós aceitámos fazer parte dele quando pusemos as nossas pequenas poupanças em Fundos internacionais…
Crise de civilização! Para onde nos levará? – gritamos nós agora. Mas os milhares de seres humanos que todos os dias morrem de fome, nem perguntam pela civilização. Só pedem uma tigela de arroz por dia e nem isso têm…
Ainda se os sacrifícios servissem para minorar os sofrimentos desses...

Terrível mundo em que vivemos!»

Os manguitos que tu não farias, Fernando, se ainda por cá andasses...



29.9.10

DIALÓGOS "à Pacheku" !



- Ké kinteressa essa conversa, ó fait néan? Manhãs a coxinar na treta e os outros que samolem, né? Greve geral naspanha, atentados lá ó longe e tu, ó cuxifel! a curtir sons bué da românticos, ó pr'aki, ó pr'áli... Andas a inganar o pagode, ó caramé - tracinho - lo!

- Ké ká saber. O Fernando Assis Pacheco é kasabia toda!
Ó pr'a ele:

Os trabalhos de amor são os mais leves
de quantos algum dia pratiquei
na cama as alegrias fazem lei
e se me queixo é só de serem breves

eu vivo atado às tuas mãos suaves
num nó de que este corpo já não sai
ferve o arco do sol a tarde cai
ardem voando pelo céu as aves

mágoas outrora muitas fabriquei
e em países salobros jornadeei
ao dorso das tristezas almocreves

a vez em que te amei um outro fui
comigo fiz a paz nada mais dói
e os trabalhos de amor nunca são graves

Lisboa
12-X-93, 23-XII-93

28.9.10

ESTÁ DEPRIMIDO(a)?



Nunca mais ouvi rir como nas comédias do Bucha e Estica, no velho Cine-Teatro de Alpiarça. A casa vinha abaixo!

Há dias encontrei o filme a que pertence esta cena, num quiosque de jornais: "Buche & Estica a Caminho do Oeste". A graça ingénua, o gozo de representar, o verso e reverso destes dois inseparáveis, o pateta esperto e o esperto pateta. Inigualáveis. Remédio para as horas mais deprimentes.

Nesta cena eles chegam a uma cidade do velho Oeste onde, à porta do saloon, uns maduros se divertem a cantar e a tocar. Estacionam o burro e deixam-se contaminar pelo som que os acolhe.

Cena deliciosa, prenúncio do que está para vir...

27.9.10

O DIA SEGUINTE







O passeio pelos vinhedos do Oeste, ontem, mais uma página bonita a juntar ao álbum.
A doçura daquele claustro, a luz suave da manhã de outono, a placidez do velho Castro do Zambujal...
E nós a caminharmos por veredas e caminhos, onde só faltou a presença de mais alguém...

Fotos © Méon

26.9.10

AMANHÃ, PELA FRESQUINHA...



Será aqui, no Convento do Varatojo, que iniciaremos o percurso do passeio pedestre pelas colinas do Oeste. Cerca de 8 km, com passagem por três dos menos conhecidos Fortes das Linhas de Torres Vedras e pelo Castro do Zambujal.
Nunca me canso de ir ao velho Convento. O claustro de sabor quinhentista é um dos mais belos lugares que conheço. Lá passaremos amanhã.
Ver o site Convento AQUI

24.9.10

CONVITE

Ruínas do palácio dos alcaides, antes do último restauro nos anos 50 do séc. XX

Sinto que devo uma breve explicação aos meus amigos que por aqui vão passando.
Ando atarefado com a sessão de hoje no Auditório Municipal, (Av. 5 e Outubro), sobre o nosso Património. Vocês não querem aparecer por lá? Vai ser uma sessão interessante, acho eu...
Está explicada a minha relativa ausência neste LUGAR. Até porque estou empenhado noutras actividades:

No domingo, dia 26, de manhã, há um passeio muito interessante à volta do Varatojo, com visita ao Convento e passagem por Fortes menos conhecidos das Linhas de T Vedras, e também, pelo Castro do Zambujal, com breve visita.
Concentração às 9 h junto à portaria principal do Convento. O perfil da marcha é nível II ("fácil"). Basta aparecer ou contactar AQUI.

Nesse Domingo, às 16 h, haverá uma visita guiada à Igreja de S. Pedro, Monumento Nacional.

Todas estas actividades são a forma de a nossa Associação do Património de Torres Vedras participar nas JORNADAS EUROPEIAS DO PATRIMÓNIO ( ver AQUI e AQUI, por exemplo...)

O lema da nossa associação é: "CONHECER MELHOR O NOSSO PATRIMÓNIO PARA MELHOR O PRESERVAR".

Temos um blogue que espera a vossa visita:
http://patrimoniodetorresvedras.blogspot.com/

Obrigado.

22.9.10

IMAGENS DE UM OLHAR


Provavelmente sabedor da minha admiração pelos ciclistas - heróis de um dos desportos mais exigentes - o meu amigo Rivel enviou-me este exercício de virtuosismo fotográfico, feito a partir do monumento ao inesquecível Joaquim Agostinho. Acompanhou-o com o admirável «Imortal», de Rodrigo Leão, na voz de Nair Correia.
Obrigado, bom amigo!

21.9.10

EM 21 DE SETEMBRO DE HÁ 2 500 ANOS: A PRIMEIRA MARATONA!


Admiro os corredores da Maratona. Em tempos ainda acalentei a ideia de me preparar para a correr, nem que fosse em 6 horas! Lembro-me agora do saudoso Tio Alex, um velho atleta do concelho de Torres Vedras, que corria longas distâncias em provas regionais - mas penso que nunca correu a Maratona. Chegava mais de uma hora depois de todos os outros - mas chegava! As organizações das provas orgulhavam-se dele e nunca permitiam que a "feira" das metas fosse levantada até que chegasse o Ti' Alex! E ele lá vinha, meio torto, a sorrir, indomável na recusa de desistir.

Segundo Heródoto, o grego que escreveu a primeira História com preocupações de rigor, foi no dia 21 de Setembro de 490 a.c. que os Gregos venceram os invasores persas na batalha de Maratona - FAZ HOJE EXACTAMENTE 2 500 ANOS!

A cidade de Atenas, a cerca de 40 km, esperava ansiosa pelos resultado do confronto. Diz a lenda que as mulheres atenienses estavam dispostas, caso os gregos fossem vencidos, a suicidarem-se depois de matarem os filhos.
Após a vitória, Milcíades, chefe grego, incumbiu o soldado Filípides de levar a notícia a Atenas o mais rapidamente que pudesse. E ele correu os 42 km sem parar, chegou e apenas conseguiu balbuciar "VENCEMOS!" - caindo morto de exaustão.
Nos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna, em Atenas no ano de 1896, o soldado Filípides foi evocado e homenageado, com a criação da corrida da Maratona, ainda hoje a última em todos os jogos olímpicos, com 42,195 Km. Ganhou-a o grego Spiridon Louis, sagrando-se como o primeiro campeão olímpico de maratona.

Por associação de ideias, está na hora de revermos "O Homem da Maratona", esse inesquecível filme de John Schlesinger, com o actor Dustin Hoffman.

19.9.10

IMORTAL by Rodrigo Leao



Obrigado à amiga H. B. de Alpiarça, pela sugestão.

Sem palavras! Ouvir em silêncio e de olhos fechados...

Rosa Albardeira | Baile Popular



A minha amiga DaBeira deu-me a sugestão. Irrecusável, para mais com imagens desse inesquecível, fabuloso, "Carteiro de Pablo Neruda" - vi-o quatro vezes no cinema Mundial...
Bom domingo para os meus amigos, com esta bonita Rosa - que eu desconhecia!

18.9.10

"AS ABANDONADAS" - Ontem em Alpiarça


Um quadro impressionante! José Relvas queria-o no seu gabinete de trabalho. Lá o vemos, hoje ainda, a marcar aquele espaço de estudo de um aristocrata revolucionário. Na Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça.
Jorge Custódio fez dele uma leitura pública, ontem, na Alpiagra. Mas não sei quem teve a ideia de se fazer aquela conferência em espaço aberto, no pavilhão do artesanato. Tive pena do Jorge, apesar de ele se ter defendido bem... Disseram-me, já no rescaldo, que se não fosse assim não aparecia ninguém. E lá veio a montanha a maomé!
Mais pormenores: AQUI, num blogue que descobri ontem, da autoria de um estudioso de José Relvas, e que lá esteve também, João B. Serra.

ESTE É UM BOM EXEMPLO DE LUGAR NO TEMPO...

Ontem andei pela Alpiarça da infância. A velha escola, onde tirei o que seria hoje o "Curso Superior da Instrução Primária",  ainda lá está mas a sala da minha 2ª classe é agora o núcleo sportinguista - entre outras mudanças chocantes...

Pareceu-me ouvir a velha Gracelinda tocar a sineta... Os gritos da rapaziada no intervalo...




No pátio havia uma escadaria onde se tiravam as fotografias anuais. Como esta, 2 /4/1957.

Eu era o "caixa d'óculos"!



E ainda sou...
Dos outros, pouco sei. Devem andar por aí, como eu...
Entretidos a viver...

17.9.10

Cântico Negro de José Régio (interpretado por João Villaret)

Faria anos hoje, José Régio. Nasceu em Vila do Conde em 17 de Setembro de 1901 e aí morreu em 22 de Dezembro de 1969.

A minha homenagem! Permanece, inesquecível, este grito de rebeldia feroz que é o Cântico Negro. Escrito num tempo em que Portugal era redil de imenso rebanho onde só alguns raros ousavam trilhar outros caminhos.

Que me desculpem os que não gostam do estilo histriónico de João Villaret...

15.9.10

NÃO RESISTI

O post com o vídeo da Ministra da Educação aí fica. Não resisti a metê-lo aqui, com aquelas "bocas" jocosas.
Bom, eu até percebo a intenção da senhora. Ela esforçou-se, coitada. Mas porque é que aquilo soa a ridículo?
Acho que é o contexto. Aquela conversa tinha-a eu no primeiro dia de aulas, quando era director de turma. Têm-na todos os professores nestes dias, aos primeiros contactos com alunos e pais.
Vir uma Ministra da Educação com aquela conversa urbi et orbi acaba por se tornar numa coisa completamente fora de propósito, para mais com aquele ar desenvolto de quem quer parecer muito familiar e que está a falar num cenário montado.

Desculpe lá, dona Isabel Alçada, mas isto é de uma parolice... de um paternalismo...

Ano lectivo 2010 - 2011: mensagem da Sra. Ministra da Educação

Olá pequerruchos! Vocês vão ser os melhores!!! OUVIRAM???

E não esqueçam: o dia tem 24 horas e vocês têm de comer bem!

E tantas, tantas, tantas coisas que vocês não podem fazer ao mesmo tempo!

Vêem? Vamos ser tão felizes, tão orgulhosos de vocês!!!

Rsrsrsrs......

13.9.10

NATÁLIA CORREIA FARIA HOJE 87 ANOS. EVOCAÇÃO.








Nuvens correndo num rio

Nuvens correndo num rio
Quem sabe onde vão parar?
Fantasma do meu navio
Não corras, vai devagar!

Vais por caminhos de bruma
Que são caminhos de olvido.
Não queiras, ó meu navio,
Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao vento
Querem estrelas varejar!
Velas do meu pensamento
Aonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venho
É uma troça tão triste;
Um navio que não tenho
Num rio que não existe.

                      Natália Correia

12.9.10

AS PEQUENAS HISTÓRIAS

São as pequenas histórias de vida que dão conteúdo humano à chamada "Grande História".

A primeira encontrei-a AQUI. A segunda está AQUI.

Uma e outra são-me oferecidas por dois amigos de rara sensibilidade e sentido de cidadania. Daí a urgência de as partilhar com os outros amigos que passam por esta página quase diariamente, incentivando-me a esta forma tão especial de conviver que é a blogosfera.

11.9.10

IMAGENS DO MEU OLHAR - A TENTAÇÃO








 Andar por Santa Cruz, em fins de tarde de Setembro, quase requer respiração assistida. Sufocamos de beleza. Ainda ontem... E eu só queria ver, VER, sentir a luz da tarde a brincar com as nuvens e o mar. Juro que não queria tirar fotografias. Olhar apenas. Porque isso é tudo, deve ser tudo, deveria bastar. Depois a noite cerraria cortinas e o que ficasse na memória dos olhos.
Não resisti.  Sim, quantas vezes já olhei aquele penedo? Mas as ondas... as ondas nunca são iguais...Nem o sol a despedir-se das nuvens...

E de novo a memória de Kazuo Dan, o poeta que veio do Japão para dizer que nunca tinha visto poentes tão belos como aqui:

"Belo sol poente! 
Ah! Pudesse eu ir buscar-te
Lá, ao fim do mar!"




Fotos © Méon

8.9.10

O DOCE MÊS DE SETEMBRO



                                                               Foto: Avelino L. Araújo


Dois poemas de Fernando Jorge Fabião, a sublinharem o belíssimo "Setembro", do A.L.A.

TÍLIAS

Recolheu os manuscritos.

Contou as tílias, a promessa

das cores. Emudeceu,

Nada alterou a sombra amável

nem a dignidade do olhar.

O ramo da escrita: luz surda

respiração

puro tacto.

Louvor mudo.



IMPRUDÊNCIAS


Há sempre, no amor, uma imprudência
um dizer atento
uma flor centrada na alegria da água

Há sempre um esboço de dança
uma gestação de ouro e seda.

O primeiro céu, a primeira colheita
o alvorecer das mãos
no corpo celeste.

Há sempre, no amor, uma mina insondável
um espólio de giestas e searas profundas.

E um imenso desejo de cantar.

Fernando Jorge Fabião

6.9.10

SARAVÁ, MEUS AMIGOS PROFESSORES!

De regresso às escolas, ao bulício das reuniões, aos processos dos alunos, às planificações de aulas e actividades... Estou convosco!
Reformei-me há dois anos, é verdade mas " não saí do combóio, apenas mudei de carruagem..." - como gosto de dizer.

Ontem alguém me enviou por mail este texto que aqui deixo. Merece ser lido. Porque é uma boa resposta aos que não percebem o que é ser professor e continuam a denegri-los. 


 
Clicar para aumentar

4.9.10

ISTO SOU EU A DIZER...

Respeito as opções políticas de toda a gente, desde que me seja reconhecido o mesmo direito.
Dito isto, apetece-me discorrer um pouco, como simples cidadão que vai lendo e ouvindo.
A situação económica em que vivemos é dramática para muita gente e propícia para uma minoria para quem as crises são “janelas de oportunidade”. Mas é uma crise que ultrapassa as nossas fronteiras. A partir da adesão à CEE / União Europeia e entrada na zona €, a nossa economia ficou, queira-se AGORA ou não, interligada com a economia europeia e mundial.
Estas duas realidades (desequilíbrio galopante entre ricos e pobres; dependência da nossa economia face ao exterior) têm de ser simultaneamente consideradas em qualquer análise que se faça.
Os pobres e os desempregados desesperam e anseiam por soluções que, em princípio, são bandeiras das esquerdas. No espectro político português é o PCP o maior e mais antigo Partido dessa área, sendo que o PS, reivindicando-se também de esquerda, tem uma prática de compromisso que o descredibiliza nessa pretensão.
Assim sendo, fui ao site do PCP em busca do documento que este Partido apresentou com a análise da situação gravíssima da nossa economia e as soluções que propõe, e que se intitula “Campanha Nacional do PCP em defesa da produção nacional e do aparelho produtivo”.
 O que li deixou-me perplexo. Aquele documento é uma utopia, sem ligação à realidade. Dir-se-ia que estamos no Portugal dos anos 60, sem economia global, sem União Europeia, sem Euro. Que vivemos num país cheio de recursos naturais e em que o Estado tem capacidade para os investimentos propostos em todas as áreas – renovação da frota pesqueira, construção de fábricas, indústria pesada, regresso em força à agricultura, subida geral dos salários e pensões, nacionalização dos sectores estratégicos, etc. É um puro delírio, à maneira da antiga Albânia, como se pode ver pela leitura do referido texto.
Que conclusão tirar daqui? Pela leitura que faço, o PCP reconhece implicitamente neste documento que não tem propostas viáveis para a crise. Ao propor TUDO não chega a NADA. Aponta para um país mítico, uma espécie de Brigadoom ideal, no qual só não entramos porque uma legião de homens maus barra o caminho, contra os interesses de milhões de homens bons que têm todas as qualidades excepto a de serem capazes de vencer a minoria dos demónios.
No fundo o que este documento diz é o seguinte: no quadro político do actual regime não há soluções para os problemas dos pobres; só com uma nova revolução, que desta vez vá até ao fim, que saia da zona euro, e da União Europeia; que feche as fronteiras à livre circulação de pessoas e bens; que ignore todos os compromissos internacionais e que institua Portugal como uma espécie de aldeia gaulesa que resiste sozinha ao invasor romano.



Reconheço que sem o PCP os pobres e os excluídos estariam ainda pior do que estão. Que a sua acção é necessária para que haja alguma resistência à enxurrada do capital financeiro mundial. Mas a opção por medidas revolucionárias cria ilusões que acabam por funcionar como a fé dos crentes e transformam os discordantes em criminosos ( no documento faz-se esta ligação, bem claramente...)
Infelizmente o movimento comunista mundial fracassou estrondosamente quanto ao objectivo mil vezes proclamado de “Proletários de todo o mundo, uni-vos!” Desgraçadamente quem se uniu foi o capital de todo o mundo. Hoje o dinheiro não tem fronteiras e a crise mundial aí está a prová-lo. Ao contrário dos proletários, explorados por todo o lado e sem capacidade de luta internacional eficaz.
Só assim entendo esta estratégia de utopia mistificadora do PCP, de que a candidatura de Francisco Lopes à Presidência da República é outra manifestação evidente. A coisa seria pacífica se não passasse de questão de opinião. O problema é que, para o PCP, o mundo só tem duas partes. De um lado “os trabalhadores e o povo”, explorados e injustiçados; do outro, os capitalistas exploradores, impiedosos e criminosos. A vida política transforma-se, assim, em luta entre “bons” e “maus” e as opções divergentes são vistas como crime. Deixa-se o plano da procura racional de soluções políticas para entrar no reino da moral: quem não está por nós é contra nós, quem se nos opõe é porque se vendeu aos grandes interesses. ( Vital Moreira passou de cérebro genial da Constituição de Abril a trânsfuga sem escrúpulos; Zita Seabra igualmente; Carlos Brito, idem; José Luís Judas, também. E tantos outros…)
Por aqui me fico. Sei que nada é simples, que não tenho soluções nem vejo saídas para o labirinto em que vivemos. Mas continuo à procura...

2.9.10

AZÁFAMA

Levar caixas de legumes de um lado para o outro, alombar com sacos de batatas, cirandar carros de mão em roda-viva, escrevinhar recibos à pressa: fervilha o mercado abastecedor de Torres Vedras, à noite, com Castelo ao fundo.
Respira-se aqui o ar do velho comércio de antigamente. Como é que estes homens de camisas suadas e estas mulheres de mãos gretadas podem ser pacificamente transferidos para o cromado e asséptico novo mercado municipal?

Com tantos adjectivos, aqui pouco se diz da genuina actividade destes sábios do abastecimento. Podem andar em carrinhas toyotas e mitzubiches, fordes e citroénes, mas é por obrigação do tempo. Nas mãos e nos dizeres ainda trazem o antiquíssimo manejar de cavalos e burros. Preferem talvez a chuva e o frio em Fevereiro, o sol e o calor deste Verão escaldado. Desconfiam do sofisticado comércio que lhes impõem de fora.
E eu pergunto: que foi feito pelos poderes instituídos para os ajudar a mudar? Para os convencer das vantagens?




E é Cesário Verde que regressa:

Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas:
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
 E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

FERNANDO FABIÃO: A DÁDIVA







Renovam-se os rituais da amizade. Setembro chegou e com ele os sinais de um poeta enorme, no coração e na escrita.
Recolho, comovido, a dádiva dos seus poemas. Partilhando com os meus amigos...


SEBES

O movimento lento da câmara
a partir do céu:
- casas sitiadas pelo abandono
sebes, cancelas de madeira
a solidão rumorosa dos salgueiros.

A criança:

- o verde não é meu é de quem o apanhar.

Ama-se o frio
como quem transpõe os umbrais de luz
e anuncia o amor

Fernando Fabião