28.6.10

Argument to Beethoven's 5th

Genial! Absolutamente imperdível! Agradeço ao PD, meu amigo de longe - no tempo e no espaço! - que me enviou esta pérola e que sou incapaz de não partilhar com os outros amigos de mais perto.

DOIS TEXTOS SOBRE O MESMO TEMA. UM É LUMINOSO, O OUTRO, ESTERCO PURO.

Comecemos pelo texto luminoso de Vasco Graça Moura, adversário de J Saramago mas seu admirador.
Uma pérola!




Na morte de José Saramago
VASCO GRAÇA MOURA
Dº Notícias  -  23 Junho 2010
Para além de inúmeras reacções circunstanciais, a morte de José Saramago trouxe à baila várias questões muito interessantes. Devo dizer que fui amigo dele e prezo grande parte da sua obra, sem subscrever, como é evidente, as suas posições ideológicas e políticas. Isso nunca me impediu de tentar compreendê-lo, nem de admirá-lo naquilo que penso ser a parte mais válida do que escreveu.
E começando por aí: é quase sempre admirável a maneira como Saramago desenvolve uma linguagem literária que, logo à partida, pretenderia aproximar-se de uma oralidade ideal e primordial, a partir da qual todos os planos da narrativa se diferenciam e na qual todos voltam depois a convergir. Esta técnica singular ter-se-á por vezes tornado num dos seus maneirismos, mas é extremamente eficaz em muitos casos.
Mas será Saramago um escritor realista, como todos os seus pressupostos de escola levariam a supor, ou estaremos antes perante um caso em que ao realismo se acrescenta algo que acaba por transfigurá-lo noutra coisa, noutro tipo de investida quase mágica sobre o real, a colocar este numa diferente dimensão de evidência angustiada e premente? Um certo tipo de destra prestidigitação exercida sobre o real, que envolve um grau mais acima na escala daquilo a que sói chamar-se ficção, cria os pressupostos de uma parábola, a implicar portanto a possibilidade de uma moralidade e de uma exegese. As armas críticas de Saramago, coincidindo aqui com as estratégias ficcionais, não dispensam essa ferramenta de transfiguração cujo coeficiente de irrealidade é criador de ambiguidades várias.
À medida que foi avançando nos anos e na obra, dir-se-ia que uma imensa amargura veio repassar alguns textos. Mais do que amargura, descrença de um sentido para o mundo ou de uma utopia redentora para os homens. O pessimismo de Saramago foi-se adensando cada vez mais. Pessoalmente, tendo a ver nisso uma "desesperança" radical cujo início coincide mais ou menos com o desaparecimento da União Soviética. Poderei estar a fazer uma leitura política tendenciosa, uma vez que sei dos posicionamentos ideológicos dele. Mas a verdade é que a cronologia não foi inventada por mim e parece-me haver uma certa coincidência. Por outro lado, nos Cadernos de Lanzarote, encontro muitas vezes um Saramago mais arrogante e auto-suficiente, muito diferente daquele que conheci pessoalmente e, para falar com franqueza, bem menos interessante como escritor e como pessoa. O que só mostra que nem todas as oficinas ganham em ser postas à vista...
Um outro aspecto que julgo importante é o de o romance saramaguiano ter regra geral tão pouco a ver com a narrativa proletária (salvo, evidentemente, o caso de Levantado do Chão) quanto com o chamado romance burguês e as suas várias derivas ao longo do século XX. Saramago conhecia muito bem todo o universo romanesco dos séculos XIX e XX. Soube, ele que tanto se inspirou no barroco, ir à picaresca espanhola buscar algumas notas importantes, entre elas a de um humor que levou com frequência a um ponto corrosivo, para caracterizar algumas das suas personagens, figuras e situações. Mas os cenários em que tudo isso se move parecem ter mais a ver com o reencontrar de um fio narrativo muito anterior a qualquer modelo de ficção preexistente, que faz as personagens existirem e agirem como que emergindo e consolidando-se nas próprias pregas do texto que está a ser escrito, entre o absurdo da situação e os possíveis dos seus comportamentos e das suas escolhas quanto a grandes questões da existência, que começam por aparecer de um modo quase anódino até se proporem ao leitor como avassaladoras e intimidantes.
Um escritor assim, para mais racionalista, ateu e empenhado socialmente por via do comunismo, tinha de questionar o Deus da Bíblia e de fazer uma leitura crítica dos seus atributos. Mas as investidas de Saramago contra Deus supõem, quase de certeza, uma contrapartida de aumento do coeficiente de humanidade e de justiça que ele quereria ver instaurado e praticado entre os homens. No seu caso, o problema é que, historicamente, a proposta política que defendia tinha saído furada e a um preço de sacrifício humano absolutamente incomportável.
Um grande escritor pode ter destas contradições e defeitos que o aproximam mais de nós e não retiram nada ao estatuto da sua grandeza.
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Agora vamos ao esterco, como faz este besouro.
É bom vivermos em liberdade de expressão. Podemos perceber melhor quem nos rodeia.
Além do mais este texto repugnante faz-me recordar uma amiga já desaparecida que gostava de dizer: "Quem não tem inimigos não é digno de ter amigos". Saramago mereceu bem os amigos.
Estou à vontade. Não fui admirador incondicional de José Saramago, manifestei-o uma ou outra vez. Mas devo-lhe o prazer da leitura de livros admiráveis: Levantado do chão, Memorial do Convento, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a Cegueira. E ainda: A Viagem do Elefante.



José Saramago: Na morte de um homem mau

Morreu um homem amargo e mau, incapaz de sorrir, que se esforçava por
tornar a sua Pátria amarga, como ele.
José Saramago, era de facto um homem mau. Provava-o a sua cara vincada
incapaz de exprimir um sorriso, prova-o a sua escrita prenhe de ódio e crítica
aos valores mais normais e caros à civilização que o viu nascer, valores esses
que ele, com as suas idéias, suas declarações e sua obra, renegou em
Lanzarote. Será que no fundo, Saramago, para além do seu marcado azedume
e soberba, tinha valores? Nunca o saberemos.
Repito, José Saramago era um homem mau. Que o digam os seus colegas, que
em pleno período revolucionário foram vítimas de saneamentos selvagens. O
homem, nessa época, tinha o estribo nos dentes, e era imparável algoz como
sub-director do Diário de Notícias. Tinha por desporto arruinar a vida de
quem não era comunista como ele.
Foram 87 anos de infecundidade, travestida de um aparente sucesso, revelado
pelos livros que vendeu, e pela matreira estratégia de marketing que o
conduziu ao Prémio Nobel, em detrimento de outros escritores Lusos,
genuinamente com mais categoria e menos maldade crónica do que ele. Penso,
por exemplo, no insuspeito Torga.
Tentei ler dois livros dessa personagem, para com honestidade poder dizer
que, para além de não gostar dele como pessoa, o não considerava como um
bom escritor, e que ofendia na sua essência a cultura Cristã da nossa Grei.
Consegui apenas ler um, e o início de outro. A sua escrita, para além de ser
incorrecta, era amarga como as cascas dos limões mais amargos. A sua
originalidade era, afinal, o sinistro das suas idéias; o que, convenhamos, é
pouco original. É mais fácil ser sinistro, provocador e mau, do que ter
categoria, e valor. Saramago optou pelo mau caminho, como sempre, o mais
fácil. E teve aparentemente sorte, na Terra, que a eternidade pouco lhe
reservará.
Fiquei contente quando ameaçou (apenas ameaçou, porque na realidade a sua
vaidade não lho permtia praticar), nunca mais pisar solo Pátrio. Uma figura
como ele, é melhor estar longe da Pátria que em má hora o viu nascer. Afinal
de que serve a este Portugal destroçado, um Iberistra convicto, ainda para
mais, estalinista? Teria ficado bem por essas ilhas perdidas de Espanha, não
fosse uma série de lacaios da cultura dominante chorarempor ele, por aqui
por terras lusas, alimentando-lhe a sua profunda soberba.
Para além da sua obra escrita, de qualidade duvidosa e brilhantemente
catapultada por apuradas técnicas comerciais que lhe conseguiram um
Prémio Nobel da Literatura, (prémio com cada vez menos prestígio devido à
carga política que contém), nada deixou em herança, para além de certamente
muito dinheiro, o que é um contrasenso para um qualquer estalinista como
ele. Mas a sua existência foi um perfeito logro. Foi uma existência
desnecessária.
Saramago afastou-se da Pátria, e estou certo de que a Pátria, no seu todo mais
puro, que não no folclore da "inteligentsia", não teve saudades dele. Foi uma
bandeira da esquerda ortodoxa, e também da esquerda ambígua, essa do
Primeiro-Ministro que nos desgoverna. Dessa mesma esquerda que decidiu
usar o nosso dinheiro, para trazer em avião da Força Aérea Portuguesa, os
seus restos inanimados para Portugal, a expensas de todos nós, e infamemente
coberto com a Bandeira Nacional. Um Iberista, coberto com a Bandeira
Nacional, que Saramago ofendeu vezes incontáveis, na essência da sua obra, e
no veneno das suas declarações públicas. Era um relapso. Um indesejável.
Um homem que voluntariamente se afastou da sua Pátria, comentando-a de
uma forma negativa no Estrangeiro, não é digno de nela entrar cadáver,
coberto com a sua Bandeira. A bandeira de Saramago, era a do ódio, da
arrogância, e da maldade praticada.
Mas os símbolos Nacionais estão hoje nas mãos de quem estão, e a
representação das vontadesNacionais, está subordinada a quem está: à
esquerda, tão sinistra como foi Saramago. Assim sendo, as homenagens que
lhe fazem, incluindo os exagerados e ilegítimos dois dias de Luto Nacional,
valem o que valem, e são apenas um acto de pura camaradagem, na
verdadeira acepção da palavra. Quem nos desgoverna, pode cometer as
maiores atrocidades, que ao povo profundo só resta pagar, e calar. Até ver.
Amanhã, Saramago mergulhará pela terceira vez nas chamas. A primeira,
terá sido quando nasceu, e ao longo de toda a sua vida, retrato que foi de ódio
e maldade pela sua imagem espelhados e espalhados; a segunda, terá sido
quando o seu corpo ficou irremediavelmente inanimado, e estou certo de que
entrou no Inferno, a confraternizar com o seu amigo Satanás; a terceira,
amanhã, será quando o seu corpo inerte e sem alma, entrar para ser
definitivamente destruído, no Crematório do Alto de S. João.
Será um maravilhoso e completo Auto de Fé. O Homem e a sua obra
venenosa, serão queimados definitivamente nas chamas da terra, que nas da
eternidade já o foram no dia em que morreu.
De Saramago recordaremos um homem que não sabia rir, que gostava
certamente muito de dinheiro, e que o terá ganho, que era mau e vaidoso, e
que o provou ao longo da sua vida, que quis viver longe da sua Pátria por a
ela não saber ter amor, e que foi homenageado por meia dúzia de palhaços
esquerdistas, compagnons de routeconiventes com um dos últimos fósseis
estalinistas, que ilustrava uma forma de estar na vida e na política sem alma,
amoral, e que globalmente contribuiu para a destruição de toda uma Pátria, e
suas tradições.
Ocorreu ontem, quando soube que este cavalheiro de triste figura tinha
morrido, que estaria por certo no inferno, sentado com Rosa Coutinho,
também lá entrado há poucos dias, à espera de Mário Soares e Almeida
Santos, para os quatro juntos jogarem uma animada e bem quentepartida
de sueca...
O País está mais limpo. Um dos maiores expoentes do ódio e da maldade,
desapareceu da superfície da Terra. Espero que a Casa dos Bicos, um dia
possa ter melhor função, do que albergar a memória de tão pérfida
personagem. As suas letras, estou certo de que cairão no esquecimento, ao
contrário das de Camões, Torga ou Pessoa, entre muitos outros.
Apesar de tudo, e porque sou Católico (e porque a raiva não é pecado), que
Deus tenha compaixão de tão grande pobreza, mas que se lembre
fundamentalmente de nós , de todos os Portugueses íntegros que tentamos
sobreviver com dificulade, neste Portugal governado pelos amigalhaços do
extinto, que apesar do luto em que fingem estar, mas que na verdade não
sabem viver, continuam a todo o custo a viver o enorme bacanal que arruina
Portugal...
No fundo, no fundo, e porque as palavras as leva o vento, que Deus tenha
piedade de tão grande pobreza! Cabe-nos perdoar. Mas não temos que
esquecer!
António de Oliveira Martins - Lisboa

25.6.10

VIAGEM NOCTURNA

A noite cresce. Os ruídos do dia demoram a calar. No silêncio da casa, nestes livros parados, há um mapa de voos possíveis.
Parei aqui:






Roteiro

Meu jeito visionário — meu astrolábio.
Meu ser mirabolante — um alcatruz.
De variadas coisas fiz a minha esperança
e sempre em várias coisas vi a minha cruz.

Aos padrões que em vários pontos encontrei
na rota íntima de vestes tropicais
eu dei as mãos, serenas e intactas,
as minhas dores mais certas e reais.

Nos vários sítios que — abismos —
toldaram minha voz por um olhar,
eu evitei o perigo e os prejuízos
à voz feita de calma, meu cantar.

Aos rasgos que, de outrora, evocados
foram sempre pelo seu valor,
eu dei a minha tez de dúvida e de espanto,
o meu silêncio amargo, o meu calor,

E aos pontos cardeais que em volta, vacilantes,
desalentavam já meu ser cativo,
parei o gesto, roubei o pólo sul da esperança
como lembrança para um dia altivo.

João Rui de Sousa


22.6.10

VIRAGEM

« On naît parmi les hommes, on meurt inconsolé parmi les dieux»
(René Char)




Le Nu perdu et autres poèmes 1964-1975

Si tu cries, le monde se tait: il s'éloigne avec ton propre monde.
Donne toujours plus que tu ne peux reprendre. Et oublie. Telle est la voie sacrée.
Qui convertit l'aiguillon en fleur arrondit l'éclair.
La foudre n'a qu'une maison, elle a plusieurs sentiers. Maison qui s'exhausse, sentiers sans miettes.

Petite pluie réjouit le feuillage et passe sans se nommer. Nous pourrions être des chiens commandés par des serpents, ou taire ce que nous sommes.

Le soir se libère du marteau, l'homme reste enchaîné à son coeur.

L'oiseau sous terre chante le deuil sur la terre.

Vous seules, folles feuilles, remplissez votre vie.

Un brin d'allumette suffit à enflammer la plage où vient mourir un livre. L'arbre de plein vent est solitaire. L'étreinte du vent l'est plus encore.

Comme l'incurieuse vérité serait exsangue s'il n'y avait pas ce brisant de rougeur au loin où ne sont point gravés le doute et le dit du présent. Nous avançons, abandonnant toute parole en nous le promettant.

René Char

Amália /**Partindo se**/


Agora que o nosso GAUDEAMUS vai cantar estes belíssimos versos de João Roiz de Castelo Branco e música de Alain Oulman...
Uma correcção: a primeira palavra do poema é "senhora". Trata-se de um poema de amor e não de uma oração...

20.6.10

A MULHER DO ESCRITOR




                                                                                 Foto do jornal espanhol La Vanguardia

A curiosidade, por vezes mórbida, por tudo quanto diz respeito a quem nos morreu, é uma forma de fazer o luto. Natural.

Em busca de notícias e opiniões sobre José Saramago, dei-me com este belo texto vindo do Brasil, AQUI.
O autor não esquece a figura tutelar que acompanhou Saramago nos últimos vinte anos de vida: Maria del Pilar. Bem sabemos como o escritor a amava e como ela foi, de facto, o pilar do último ciclo da sua vida. Por isso este testemunho me tocou tanto.
Como me tocou igualmente a foto que, segundo o La Vanguardia, terá sido a última do escritor, em finais de Maio deste ano.
Ela diz tudo sobre o homem que reinventou a arte do romance: calejado pelos anos e enternecido por um amor total. Mas diz tudo também sobre esta mulher que despertou o amor e fez dele a vida, toda a VIDA!

18.6.10

NO DIA DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO



Não esquecerei a leitura de LEVANTADOS DO CHÃO, MEMORIAL DO CONVENTO e ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. Grandes livros!

Não apreciei a postura de "profeta da tribo", na fase final da sua vida, com o enorme equívoco que foi o ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ - ao mesmo tempo que era candidato político num acto eleitoral.
Contradições de um grande escritor...

Homenageio-o com alguns dos seus textos:

Fala do Velho do Restelo ao Astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

                        
Dulcineia
Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.
              
INTIMIDADE
No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,
Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

* * *

A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.
Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?
Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer.
Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias.

José Saramago, in 'Diálogos com José Saramago'





POEMA PARA HOJE




MINUTO

O amor? Seria o fruto
trincado até mais não ser?
( Mas para lá do prazer
a Vida estava de luto... )

Fui plantar o coração
no infinito: uma flor...
( Mas para lá do fervor
a Vida gritou que não! )

O amor? Nem flor nem fruto.
( Tudo quanto em nós vibrara
parecia pronto a ceder... )

Foi apenas um minuto:
a fome intensa, tão rara!,
de ser criança, ou morrer...


(David Mourão-Ferreira)

17.6.10

DOIS MESES E MEIO... MAS CHEGARAM!

Sacadura Cabral e Gago Coutinho


Faz hoje 88 anos!
1922: Gago Coutinho e Sacadura Cabral completam a primeira travessia aérea do Atlântico sul, em várias etapas, entre Lisboa e Rio de Janeiro. Partiram em 30 de Março, chegaram em 17 de Junho.
Para ver pormenores: AQUI e AQUI


Viajaram nesta caranguejola



As cabeças não cabiam lá dentro...


Um abraço aos meus familiares e amigos do Brasil!
E um VIVA aos heróis que abriram caminho às rotineiras viagens de hoje!

16.6.10

"DESAPOSENTAR"


Ontem passei por alguns dos velhos jardins de Lisboa - Campo Grande, Estrela, ... - e lembrei-me dos jogadores de sueca que por ali eternizam tardes com um baralho de cartas na mão.
Chegado a casa encontrei esta crónica que alguém me enviou por mail. Prosa saborosa, de inimitável colorido "brasilenho". Como não partilhar?

DESAPOSENTAR
(Domingos Pellegrini)

Ele chegou à praça com uma marreta. Endireitou a estaca de uma muda de árvore e firmou batendo com a marreta.
Amarrou a muda na estaca e se afastou como pra olhar uma obra de arte.
Não resisti a puxar conversa:
- O senhor é da prefeitura?
- Não, sou da Alice, faz quarenta e dois anos. Minha mulher.
- Ah... O senhor foi quem plantou essa muda?
- Não, foi a prefeitura. Uma árvore velha caiu, plantaram essa nova de qualquer jeito, mas eu adubei, botei essa estaca aí. Olha que beleza, já está toda enfolhada. De tardezinha eu venho regar.
- Então o senhor gosta de plantas.
- De plantas, de bicho, até de gente eu gosto, filho.
- Obrigado pela parte que me cabe...
Ele sorriu, tirou um tesourão da cinta e começou a podar um arbusto.
- O senhor é aposentado?
- Não, sou desaposentado. Foi podando e explicando:
- Quando me aposentei, já tinha visto muito colega aposentar e murchar, que nem árvore que você poda e rega com ácido de bateria... Sabia que tem comerciante que rega árvore com ácido de bateria pra matar, pra árvore não encobrir a fachada da loja? É... aí fica com a loja torrando no sol!
Picotou os galhos podados, formando um tapete de folhas em redor do arbusto.
- É bom pra terra... tudo que sai da terra deve voltar pra terra... Mas então, eu já tinha visto muito colega aposentar e murchar. Botando bermuda e chinelo e ficando em casa diante da televisão. Ou indo ao boteco pra beber cerveja, depois dormindo de tarde. Bundando e engordando... Até que acabaram com derrame ou infarto, de não fazer nada e ainda viver falando de doença.
Cortou umas flores, fez um ramalhete:
- Pra minha menina. A Alice. Ela é um ano mais velha que eu, mas fica uma menina quando levo flor. Ela também é desaposentada. Ajuda na escola da nossa neta, ensinando a merendeira a fazer doce com pouco açúcar e salgados com os restos dos legumes que antes eram jogados fora. E ajuda na creche também, no hospital. Ihh... A Alice vive ajudando todo mundo, por isso não precisa de ajuda, nem tem tempo de pensar em doença.
Amarrou o ramalhete com um ramo de grama, depositou com cuidado sobre um banco.
- Pra aguar as mudas eu tenho que trazer o balde com água lá de casa.
Fui à prefeitura pedir pra botarem uma torneira aqui. Disseram que não, senão o povo ia beber água e deixar vazando. Falei pra botarem uma torneira com grade e cadeado que eu cuidaria. Falaram que não. Eu teria que ficar com o cadeado e então ia ser uma torneira pública com controle particular, e não pode.
Sorriu, olhando a praça.
- Aí falei: então posso cuidar da praça, mas não posso cuidar de uma torneira? Perguntaram, veja só, perguntaram se tenho autorização pra cuidar da praça! Nem falei mais nada. Vim embora antes que me proibissem  de cuidar da praça... Ou antes que me fizessem preencher formulários em três vias com taxa e firma reconhecida, pra fazer o que faço aqui desde que desaposentei... Ta vendo aquele pinheiro fêmea ali? A Alice que plantou.
Só  tinha o pinheiro macho. Agora o macho vai polinizar a fêmea e ela vai dar  pinhões.
- Eu nem sabia que existe pinheiro macho e pinheiro fêmea.
- Eu também não sabia, filho. Ihh... aprendi tanta coisa cuidando dessa praça! Hoje conheço os cantos dos passarinhos, as épocas de floração de cada planta, e vejo a passagem das estações como se fosse um filme!
- Mas ela vai demorar pra dar pinhões, hein? - falei, olhando a pinheirinha ainda da nossa altura. Ele respondeu que não tinha pressa.
- Nossa neta é criança e eu já falei pra ela que é ela quem vai colher os pinhões. Sem a prefeitura saber... e a Alice falou que, de cada pinha que ela colher, deve plantar pelo menos um pinhão em algum lugar. Assim, no fim da vida, ela vai ter plantado um pinheiral espalhado por aí. Sem a prefeitura saber, é claro, senão podem criar um imposto pra quem planta árvores...
- É admirável ver alguém com tanta idade e tanta esperança!
Ele riu:
- Se é admirável eu não sei, filho, sei que é gostoso. E agora, com licença, que eu preciso pegar a Alice pra gente caminhar. Vida de desaposentado é assim: o dinheiro é curto, mas o dia pode ser comprido, se a gente não perder tempo!

Publicado na GAZETA DO POVO, de 22/05/05, Fortaleza-CE

14.6.10

BUMBA MEU-BOI

Nas andanças internéticas acontece-me o mesmo que quando me meto por becos e vielas das cidades antigas: vou dar a lugares inesperados, revelações únicas que marcam a viagem.
Andava eu pela biografia do grande Ferreira Gullar e fui parar às festas juninas de S. Luís do Maranhão, terra natal do grande escritor.
A designação da festa é bem brasileira, exemplo do inesgotável manancial linguístico que dali jorra: "BUMBA MEU-BOI".
A origem do auto do bumba-meu-boi remonta ao Ciclo do Gado, no século XVIII, resultante das relações desiguais que existem entre os escravos e os senhores nas Casas Grandes e Senzalas, refletindo as condições sociais vividas pelos negros e índios. Contado e recontado através dos tempos, na tradição oral nordestina, e depois espalhada pelo Brasil, a lenda adquire contornos de sátira, comédia, tragédia e drama, conforme o lugar em que se inscreve, mas sempre levando em consideração a estória de um homem e um boi...

O que isto seja, só vendo. Deixo AQUI o rasto. E a vontade de lá ir um dia...
E agora vamos ouvir! BUMBA MEU-BOI!!!!

Bumba meu boi in São Luís, Brazil

Um encontro inesperado com o genuíno folclore brasileiro. Vale a pena deixar correr o vídeo, há registos variados a não perder!

13.6.10

PARABÉNS, SENHOR FERNANDO!

Faria hoje 122 anos. Fernando Pessoa.

Em 13 de Junho de 1930 escreveu no poema "ANIVERSÁRIO:

«No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.»

Em dia de anos costumo dar parabéns aos pais. Mas sobretudo à mãe.
Neste caso, D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira, que aqui vemos na sua casa em Pretória.



Para mim, o grande livro de Fernando Pessoa é O LIVRO DO DESASSOSSEGO.
O mais parecido com a vida dele: aparentemente organizada mas, na realidade, caótica, desarrumada, fragmentada.

Um excerto, (aparentemente) ao acaso:

ESTÉTICA DO DESALENTO

Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.
Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.
Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou activar uma intenção, criar colidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer.

Livro do Desassossego, Fernando Pessoa; ed. Richard Zenith

12.6.10

ÓCULOS DE PAI


Um poema de Ferreira Gullar
em memória de meu pai, que teve uns óculos assim...



Meu pai


meu pai foi

ao Rio se tratar de

um câncer (que

o mataria) mas

perdeu os óculos

na viagem



quando lhe levei

os óculos novos

comprados na Ótica

Fluminense ele

examinou o estojo com

o nome da loja dobrou

a nota de compra guardou-a

no bolso e falou:

quero ver

agora qual é o

sacana que vai dizer

que eu nunca estive

no Rio de Janeiro


De Muitas Vozes (1999)

10.6.10

UMA INICIATIVA PIONEIRA




Há 15 anos duas associações de Torres Vedras - o Espeleo-Clube e a Associação de Defesa do Património -  lançaram uma iniciativa pioneira: reunir os alunos das escolas do concelho e limpar as arribas e dunas do litoral. As escolas aderiram de imediato e, desde então, todos os anos, numa manhã de Junho, centenas de jovens limpam aqueles espaços, com o apoio dos serviços camarários, que disponibilizam os meios necessários.
No final, é servido um almoço no pinhal de Santa Cruz.
Este ano o Costa Viva foi no passado dia 7 de Junho.










O Presidente da Câmara, Carlos Miguel, e o Vereador do Ambiente, Carlos Bernardes, servem o arroz à valenciana, o prato forte do almoço.
No fim houve festa de aniversário:
os 15 anos do Costa Viva e os 58 de um dos fundadores e mecenas da iniciativa, Valdemar Neves.