20.1.07
RECORDAÇÕES
Lembro-me disto como se o tivesse vivido ontem: o jardim envolto numa obscuridade de noite luarenta, um calor moderado como às vezes se sentia em certas noites de Agosto, um banco corrido onde ficávamos na conversa até já não haver movimento na rua. Era em Alpiarça, anos 60, e nós aprendíamos uns com os outros a falar da vida e do que ela nos ia revelando. Eu iniciava-me no travar fumo, tossicando meio engasgado, e o meu “professor” que fumava já à homem, chupava cigarros sem filtro e ia cuspindo para o chão os nicos de tabaco que se agarravam aos lábios. Falávamos das miúdas com o ar entendido de quem não sabe nada mas imagina muito. Contávamos intimidades com risos lúbricos e mentiras descaradas em que todos fingiam acreditar.
Nisto ouvimos um grito. Olhámos através do gradeamento do jardim e vimos uma mulher a correr pela Rua Direita e a gritar: “morreu o meu menino!... morreu o meu menino!...” Alvoroçados fomos para ela e perguntámos: “morreu quem? O que é que aconteceu?...” E ela em soluços, atirando as mãos ao ar: “ o João Calçada, morreu o João, o meu menino...” “Onde, onde é que ele morreu?” – perguntei eu que tinha sido colega do João nos Externato S. Paulo, anos antes. “Foi morto, o meu menino foi morto em Moçambique, ele estava lá a fazer a tropa!...”
Nunca mais esqueci. Fui amigo do João, andei à briga com ele, brincámos, jogámos à bola. Pequenito mas muito mexido, de uma alegria transbordante, o João. Deixou de ir ao jardim muito antes de nós, a vida levou-o para longe, tínhamo-lo perdido de vista. Nas matas de Moçambique, uma emboscada parou-lhe a vida. Meses depois voltou a Alpiarça, para o repouso eterno. Recordo os irmãos – o Zeca e a Teresa – que vi, passado algum tempo, sufocados de lágrimas.
Lembro-me disto como se o tivesse vivido ontem, e já lá vão quase quarenta anos. Não sei o que me avivou estas memórias, hoje. Talvez por ter um filho chamado João, de vinte e três anos e cheio de projectos.
No grande caudal da vida, todos chegaremos à foz. Mas nunca perdoaremos os senhores da guerra que afundaram prematuramente os projectos de tantos jovens como o João Calçada.
«NASSREDINE, O VAGABUNDO»
António Manuel Alcobia foi um dos meus pontos de referência na juventude. De porte altivo, tinha farta cabeleira sobre uma testa ampla, a voz rouca e os gestos desprendidos mas firmes de quem vai à frente e não liga à plebe. Eu sentia-me miudeco ao pé dele apesar da escassa diferença de dois anos a menos.
Recordo uma daquelas noites de verão no jardim de Alpiarça, quando chingávamos o pobre Laurentino jardineiro que se via obrigado a ameaçar “Vão p’lá lua! Vão p’lá lua!” – por um defeito na fala ele não conseguia dizer “rua”. Numa dessa noites o Alcobia estava inspirado. E perante o meu já desperto gosto pela leitura, desatou a falar num livro que acabara de ler: “Nassredine, o Vagabundo”. Cresceu-me a curiosidade e pedi-lhe o livro. Quando mo entregou aguçou-me o apetite: “Hás-de ver aquela passagem em que ele está cheio de fome e sente um aroma de comida a passar-lhe pelos nariz... É fabuloso!”
Li, deliciado as aventuras do vagabundo que para mim ficou como o símbolo do homem intrinsecamente livre, senhor de uma filosofia do desprendimento que hoje ainda mais se agiganta face ao consumismo em que vivemos. Nunca mais esqueci este livro.
Agora, vejam bem: num país tão pequeno como o nosso, saí de Alpiarça com 18 anos e não voltei a ver o António Manuel. Vim a encontrá-lo na página 7 deste jornal, em Dezembro passado, na rubrica “Como vamos de leituras”. E de que livro falava ele? Adivinhem!
Aqui vai um abraço para ti, saudoso amigo, e a esperança de um encontro para breve. Pode ser?
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