3.10.12

INDIGNIDADES.


Ontem deixei aqui a vaga promessa de uma análise mais pormenorizada sobre o filme das Linhas. Acabei por não arranjar tempo para isso.
Entretanto anunciam-se mais medidas... 

Tenho vergonha de um Governo que ajoelha no altar da alta finança, de cerviz dobrada e postura subserviente. Que vai a Bruxelas limpar o capacho dos credores e volta a Portugal com o ar impante de quem se julga domador de escravos. Gente que desconhece a DIGNIDADE .

Mão amiga fez-me chegar este texto que me tocou fundo. Não sendo de um opinador político, é intensamente político na análise a uma sociedade à beira do desespero. Ele exprime o que muitos sentem e sofrem nestas horas negras que vivemos.

         *Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso,
publicado há dias no jornal Público*


«Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo
que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudoepidemiológico
nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da Europa com a maior
prevalência de doenças mentais na população. No
último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica
(23%) e quase metade (43%) já teve uma destas perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com impotência a
uma sociedade perturbada e doente em que violência, urdida nos jogos e na
televisão, faz parte da ração diária das
crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens infantilizados
incapazes de construírem um projecto de vida, escravos dos seus insaciáveis
desejos e adulados por pais que satisfazem todos
os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária.
Na escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos terão
de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade de adquirir
conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural que assim seja,
dado que a actual sociedade os inebria de direitos, criando-lhes a ilusão
absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze anos,
o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100 casamentos
(dados de 2008). As crises conjugais são também um reflex das crises
sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres humanos não existe uma
sociedade forte, capaz de criar empresas sólidas e fomentar a prosperidade.
Enquanto o legislador se entretém maquinalmente a produzir leis que
entronizam o divórcio sem culpa, deparo-me com mulheres compungidas, reféns
do estado de alma dos ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da
miserável pensão de alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez mais
difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família. Nas
empresas, os directores insanos consideram que a presença
prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e produtividade.
Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de três horas nas
deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a
casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma mãe
marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão cansada que
quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de desemprego em
Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho presenciado muitos
casos de homens e mulheres que, humilhados pela
falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição da
pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual, tornadas
inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

*Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar que
alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês, enquanto
outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à actividade da
pilhagem do erário público.*
Fito com assombro e complacência os olhos de revolta daqueles que estão
cansados de
escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando já há
muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com
responsabilidades
governativas porque se dedicam obsessivamente aos números e às estatísticas
esquecendo que a sociedade é feita de
pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um mecanismo
oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de um povo, criando
condições sociais que favorecem uma decadência neuronal colectiva,
multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o estômago
vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se há-de
concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma inquietação
culposa diante destes rostos que me visitam diariamente.»

Pedro Afonso
Médico psiquiatra



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