16.9.09

AINDA ACTUAL


[ Edição recente da Ed. Tinta da China, com um bom prefácio de Eduardo Lourenço]

UM TEXTO FUNDADOR DA NOSSA MODERNIDADE

A nova estátua de Antero de Quental, inaugurada há dias em Santa Cruz (concelho de Torres Vedras), além de recordar o Verão de 1870 que ele ali passou em companhia de Jaime Batalha Reis, vem lembrar-nos a obra de um autor que abalou até aos alicerces o velho edifício mental português e abriu perspectivas de modernidade que ainda hoje estão longe de completamente realizadas.

A obra de Antero é multifacetada, desdobrando-se por textos de intenção filosófica (de que se destacam as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX); de intenção poética (Sonetos e Odes Modernas); e de cariz social. Neste último grupo destaca-se aquele que, no dizer de Eduardo Lourenço, é um dos grandes textos fundadores da modernidade portuguesa: as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Com ele, Antero participou nas chamadas Conferências do Casino, em 1871, que fizeram estremecer o velho e adormecido Portugal, ainda dominante apesar de politicamente constitucional. Ao lado de Antero estavam homens como Eça de Queirós, Oliveira Martins ou Batalha Reis, empenhados, todos eles, em rasgar horizontes e abater os estreitos limites da mentalidade portuguesa, emparedada entre mais de 80% de analfabetos e uma religião católica mal entendida e usurpada em proveito próprio por aristocratas e burgueses.
Logo pelo título Antero alarga o seu campo de análise à Península Ibérica, não a confundindo com essa forçada construção política chamada “Espanha” – de que Portugal, mais periférico, conseguira separar-se - fruto dos interesses dinásticos das monarquias que ignoravam a identidade e autonomia de povos tão diversos como os Bascos, os Galegos ou os Catalães.


Dois excertos do texto de Antero de Quental:

«Meus Senhores:

A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do seu Deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.

(…) é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península. (…) são três e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia; a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou; a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo a força pelo trabalho, e a guerra de conquista pelo comércio.»

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