23.3.10

A QUESTÃO DO GARRAFÃO



O meu amigo Venerando de Matos tem procurado esclarecer esta questão: "é ou não uma boa decisão do Presidente da Câmara a compra de um objecto artístico para colocar numa praceta de Torres Vedras? - um garrafão em ferro forjado da artista Joana Vasconcelos?". Veja-se AQUI e AQUI o seu valioso contributo para esta discussão.

 Como cidadão torriense esta questão não me pode passar ao lado, por isso tenho pensado no assunto.
Sou sensível aos argumentos que defendem a bondade desta compra, até porque desde que me conheço sempre me movi na área cultural de que as Artes  são parte importante.
Mas... sou ainda mais sensível a considerações de ordem prática que alguns chamam de "economicismo".
Nasci numa família onde se contavam os tostões quando era preciso comprar algum bem necessário. Sempre tive as botas mais baratas, as calças mais baratinhas, os casacos de um familiar mais velho, a roupa em geral durava até ao fio. Restaurantes, só entrei num quando já era adulto. Comia-se o básico, queijo flamengo era luxo de Natal e Páscoa. Estudei porque era bom estudante e mereci uma bolsa. Quando a perdi por não ser capaz de manter a elevada média exigida, fui trabalhar para acabar o curso. Só havia dinheiro para o essencial, o resto era considerado supérfluo.
Não fui caso único, muitos fizeram este percurso de que me orgulho sem vaidade.

Talvez por isso não seja capaz de avaliar esta questão do garrafão fora dos conceitos em que fui criado. Se eu fosse Presidente, seria capaz de fazer esta compra? Acho que não. Porque, quando não há dinheiro para o essencial, é errado gastá-lo em supérfluos, por mais legítimos que pareçam.
E o essencial é, por exemlo, o arranjo daquele feíssimo lugar em que se transformou a preceta do Chafariz dos Canos, assim como o próprio chafariz. Gastar uma pipa de massa num objecto de arte, quando a 100 metros dele, jaz em vil e triste estado um Monumento Nacional único como é o Chafariz dos Canos... desculpem, mas parece-me uma imoralidade.

Claro que me vão dizer que a conservação de um Monumento Nacional não é da competência da Câmara. Sei que assim é. Mas também todos sabemos que há dezenas de Monumentos Ncionais a necessitarem de socorro e que o Estado Central não pode acorrer a todos. Fá-lo-á com aquelas Câmaras que se disponibilizarem para fazer contratos especiais em que contribuam com a sua parte.

Se eu fosse Presidente da Câmara gostaria muito de comprar o garrafão - que acho uma peça muito bonita, digo-o sem ironia. Mas... logo me lembraria da minha mãe que não me comprava um bolo porque só tinha dinheiro para um papo-seco. E isso aconteceu tantas vezes...

1 comentário:

Anónimo disse...

Não posso estar em maior desacordo contigo. Ao invés do que o senhor dr. Oliveira Salazar nos tentou convencer a todos, a pobreza não é virtude, nem título para quem dela seja vítima -sim, vítima, porque a pobreza é um mal a erradicar. E ela não se combate remunerando a peso de ouro gestores ineficientes e/ou artistas que não trabalhem, só porque são do partido, da loja ou "lá de casa". Isso é o tal desperdício de que falas, a tal imoralidade que invectivas.
A arte pública, quero dizer, destinada a ser fruída pelo público em geral -seja num museu, numa sala de espectáculos, ou na rua- não é necessariamente desperdício e, em geral, não o é: se for realmente arte, claro.
Por outro lado, sobre a Joana Vasconcelos pode-se, naturalmente, discutir se merece -isto é, se a sua obra tem mérito- o relevo que está a ter e se o preço a que as suas obras são cotadas é aceitável, ou se se trata de um mero fenómeno especulativo. Mas esta questão põe-se em relação a todas as formas artísticas, em especial à escultura, e esta cidade já tem discutido isso a propósito da ornamentação de umas rotundas.
Aliás, censura semelhante à tua tem sido feita, desde sempre, à riqueza das igrejas, frequentadas por pobres que, ainda por cima, contribuem para ela. E todavia, ninguém põe em causa que o património edificado das igrejas é um dos elementos mais relevantes da riqueza cultural do País.
Também já passei -e por vezes, lá acontece- algumas falhazitas para comprar um livro, ou ver uma peça... Em algumas ocasiões, isso custa-me algum incomodozito -pouco, pouco, que felizmente o salazarismo nunca me atacou a fundo-, mas... o livrito lá está na prateleira e, quando o li, no resultado assimilado; e a peça foi um momento diferente que guardarei para sempre na memória, mesmo depois de a ter esquecido.
De modo que se o Carlitos Miguel comprasse uma tapeçaria para ter lá no seu gabinete e mostrar aos autarcas que o visitassem, era mal empregado, com o Chafariz naquele estado. Mas a arte para o Povo é um direito deste -e como tal, é devido.
Um abraço do teu sempre leitor atento,
S.