21.4.09

VALEU A PENA ?


Carta a um jovem da geração traída*

Pego no teu livro, meu caro Luís, e sinto a boca seca apesar da leitura silenciosa que faço dos teus versos: “Sou apenas mais um daqueles / de quem se poderá dizer /que pertencem / a uma geração traída.”
Vi-te crescer por entre os nossos comícios e sessões de esclarecimento, as eleições primeiras para essa novidade absoluta que eram as autarquias nas mãos do povo ou as intermináveis reuniões das comissões de moradores. Tínhamos a ilusão de construir um mundo novo sobre as ruínas de um Estado Velho que nos empurrara para o beco do «orgulhosamente sós» da guerra colonial, esse absurdo histórico. Provavelmente não nos preocupámos muito contigo, ocupados que estávamos em te garantir a herança de um país bem diferente, radicalmente melhor, onde tu fosses, finalmente, feliz!
Mas, trinta e cinco anos depois, leio o teu profundo desencanto:
«E aqui onde me encontro, / onde nos encontramos, / eu e a minha geração, / sabemos agora que tudo isso valeu nada / porque sentimos / exactamente / as mesmas dores / as mesmas balas / mas em forma de / desemprego / salário mínimo nacional / emprego desqualificado / & etc e tal.»
Procuro consolar-te com a LIBERDADE em que vives, que nós não tínhamos antes daquele ano de 1974. E recebo em pleno rosto o teu desabafo, irónico e tão doloroso:
«Fizeram-nos infelizes / ou felizes sem razão / fizeram-nos fanáticos da bola / ignorantes da filosofia / sem partido / sem religião / sem entrada / e / sem saída profissional. / Agora casamo-nos / e divorciamo-nos/ rapidamente. // Tudo é uma questão / de margem de lucro.»

Deixa-me que te diga, meu jovem Luís: nós não traímos a tua geração! Naqueles anos 74/75, acreditámos ingenuamente num futuro melhor para nós e para ti. Não sabíamos ainda que os exércitos marcham à velocidade dos mais lentos ou dos mais manhosos e calculistas. Os capitães que partiram as grades não quiseram parecer interesseiros e entregaram as chaves aos velhos carcereiros. E agora, que é de novo madrugada e o calendário diz que passam 35 anos depois daquele memorável 25, vemos passar na rua um jaime general enquanto todos os salgueiros maias vivem em presídios bolorentos. Os chefes desta república bebem, outra vez, o sangue fresco da manada e o povo, desiludido, deixou de gritar que “jamais será vencido”.
Sim, Luís, ainda há quem acredite que o 25 de Abril valeu a pena. Mas muitos limitam-se a verificar que ganharam a liberdade mas perderam a segurança – trucidados pela eterna oposição entre esses dois pólos da vida humana!
Agora, que se faz tarde para mim, quero acreditar em ti e na tua geração. Que vocês não vão ficar aí parados a gemer queixumes. Que têm uma palavra a dizer, uma carta a jogar, um país a refazer. Eu sei que não são fáceis as madrugadas redentoras. Mas ainda acredito, ainda acredito. Porque sem esperança a História é uma engrenagem sem sentido.

* A partir do livro A Cabeça de Fernando Pessoa, de Luís Filipe Cristóvão. O autor nasceu em 1979. Edição Ardósia, S/L, 2009.
Cartaz de Sebastião Rodrigues, 1977

9 comentários:

Venerando António Aspra de Matos disse...

Arrebatador, o teu texto e o belo poema do Luís.

Força sempre!

Um abraço

Venerando

Unknown disse...

Méon,

o desencanto TEM de dar lugar a uma soma de vontades que encarem de frente o FUTURO!

Acreditemos, pois!

Beijinho.

Cs disse...

Os que lutam e conhecem a dinâmica da história nunca se consideram traídos.

Manela disse...

Hesitei em comentar ou não... mas a questão do título do post e a memória das reuniões a que aludes, que tanto compartilhámos, impõem me uma resposta: VALEU A PENA , SIM, VALE SEMPRE a PENA, apesar dos novos vampiros e oportunistas que se pensam donos deste país...
LIBERDADE, Sempre.
Um beijinho

Maria Faia disse...

Belo texto meu amigo,
Muitos de nós sentimos na pele o desencanto, o desespero do sofrimento, quando nosso, do nosso vizinho/amigo/conhecido.
Passado o sonho da liberdade caiu-se no exagero do tudo pode, ingnorando-se que os limites de cada em se encontram no princípio da esfera dos demais.
As diferenças sociais agudizadas por esta sociedade neoliberal deixam-nos cada vez mais inquietos e a sensação que temos é, muitas vezes, de impotência...
Mas mesmo assim, não perdemos a esperança!

Um abraço amigo,
Maria Faia

Luis F. Cristóvão disse...

não me caberá a mim justificar o meu próprio texto, bem o sei. mas julgo que haverá algo a acrescentar. como bem perceberá, estou longe de considerar que o 25 de abril não valeu a pena. muito menos que a minha geração seja a única geração que se possa sentir traída. nada disso. acho até que o texto, apesar de algumas referências temporais (quase todas aos anos 80), tem dados com que muita gente se identificará.
a traição sentida não é pela promessa da liberdade, não pode ser. a traição é pela promessa de conhecimento, de evolução, de camaradagem, tudo coisas que nunca foram cumpridas. talvez, mais do que colar este texto ao 25 de abril, me pareça que faz sentido colá-lo à nossa entrada para a união europeia (coisa que também vejo, historicamente, como inevitável). no entanto não posso calar que aquilo que nos foi prometido sucessivamente, e principalmente pelos senhores Cavaco Silva e Mário Soares (e por todos aqueles que com eles estiveram nos diferentes momentos da história), não se cumpriu. não se cumpriu mesmo! e tanto mais doloroso isto pode ser, que Cavaco Silva beneficiou de maiorias e votações de toda a direita, tal como Mário Soares chegou a ter largas votações e apoios em todos os partidos da esquerda.
agora, vitimização, não. uma geração, mesmo que traída, nunca é vítima. as vítimas são aqueles que acreditaram e deixaram de acreditar. a nós, deram-nos a possibilidade de sermos, talvez, a geração mais cínica da história de portugal. e talvez, por isso mesmo, continuemos a lutar. um texto como este (até pela repercussão que tem aqui) é uma boa forma de não baixar a guarda.

um abraço, professor.

Fernando Santos (Chana) disse...

Caro amigo, belo texto...Espectacular....
Um abraço

Francisco Miranda Rodrigues disse...

Percebendo o desencanto do Luís não acho que seja desalento. Ele existe embora não me pareça que no Luís mas sim no povo em geral. Não sou saudosista embora goste de recordar com saudade, pontualmente, os bons momento que vivi ou que gostaria de ter vivido e sinto através as memórias dos mais velhos. Com os meus pais aprendi os ideias de Abril de 74. Não sei se terão sido bem aqueles que realmente despoletaram a na rua a revolução (a guerra e o seu fim isso sim, claro!). Parece-me que à sua medida nos esquecemos (portugueses) que esses ideais não são um posto e conquistam-se todos os dias em todos os papéis que desempenhamos. É na micro luta do dia-a-dia que podemos fazer um mundo melhor e dar significado e sentido à vida e à história. Fazer isso é um compromisso com a vida de forma activa na defesa de valores e princípios, participando sempre na vida pública, lutando contra invejas e compadrios e defendo o mérito, a solidariedade e o próximo, pois essa é a melhor forma de defender o interesse individual. Mas não é fácil. E talvez se tenha falhado no mais essencial das bases do desenvolvimento e da democratização, a educação. Sem uma boa educação não temos desenvolvimento e pomos em causa a democracia. Esse erro tem mais de 20 anos e continua a ser perpetuado. Haja corajem para o corrigir para que daqui a 20 anos não se possa dizer o mesmo. Temos é que fazer por isso...

Maria Faia disse...

Estimado Amigo Méon,

Que o Povo ordene SEMPRE!
Venho desejar-lhe uma feliz comemoração da Liberdade na esperança de que a verdadeira Paz, Igualdade e Fraternidade se consolidem nesta nosso tenra democracia suada.

Um abraço amigo,
Maria Faia