28.1.11

SOPHIA, ONTEM E HOJE



Na Fundação Gulbenkian está a decorrer o Colóquio Internacional sobre Sophia de Mello B. Andersen. Um aconteciemento, a marcar a entrega do espólio da escritora à Biblioteca Nacional.
Corolário do trabalho importante realizado pela filha, Maria Andersen, sobre esse espólio, como ficou patente no programa da RTP 2, Câmara Clara, no passado Domingo, 23 de Janeiro, em que foi convidada de Paula Moura Pinheiro, como se pode ver AQUI.
Entretanto saíu o JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias) cujo tema de capa é "Sophia continua".


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Toda a escrita de Sophia é luminosa e transparente, reconheço-o de novo ao reler as suas "Artes Poéticas", porta de entrada principal para o seu universo interior. Como esta:


ARTE POÉTICA — II
A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema fala não de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silên¬cio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, per-fume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.
É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedras» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos, entre si.
E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

[Sophia de Mello Breyner Andersen, OBRA POÉTICA, ed. Caminho, 2010]

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