1.4.10


«Lembro-me do contacto com os lençóis, gelados como mortalhas, quando me introduzia neles com os meus sessenta por cento de esque¬leto, os meus trinta ou quarenta por cento de carne e os meus cinco por cento de pijama. Lembro-me da frieza das colheres e dos garfos até aquecerem com o contacto das mãos. Lembro-me da insensibilidade dos pés, que pareciam duas próteses de gelo colocadas no extremo das pernas. Lembro-me das frieiras, Santo Deus, que começavam a fazer comichão no meio de uma aula de Francês ou de Matemática, e lem-bro-me que se caíamos na tentação de nos coçar sentíamos um alívio imediato, mas logo a seguir respondiam ao estímulo multiplicando a sensação de prurido. Lembro-me que aprendi esta palavra, prurido, numa idade absurda, ao lê-la nos prospectos daqueles cremes que não serviam para nada. Lembro-me sobretudo que o frio não vinha de ne¬nhum lugar, pelo que também não havia maneira de o deter. Fazia parte da atmosfera, da vida, porque a condição da existência era a frieza como a da noite é a obscuridade. Estava frio o chão, o tecto, o corrimão das escadas, estavam frias as paredes, estava frio o colchão, estavam frios os ferros da cama, estava gelada a borda da retrete e a torneira do lavatório, com frequência estavam geladas as carícias. Aquele frio de então é o mesmo que hoje, apesar de aquecimento, espreita nalguns dias de Inverno e faz saltar pelos ares o registo da memória. Quando se teve frio em criança, ter-se-á frio o resto da vida.»

Escrever bem é saber usar as palavras certas em frases bem organizadas para transmitir alguma coisa,  de tal forma que ela pareça única no universo da vulgaridade.




Juan José Millás é um autor espanhol contemporâneo que escreve muito bem. Diz-se que a maior tentação de alguém que quer ser escritor é começar por contar a vidinha. Este livro podia ser o mau resultado dessa tentação mas não é. Porquê? Porque a voz que fala dentro da narrativa podia ser a minha. Apropriei-me da narração porque ela é convincente. De tal modo que é universal e não apena a vidinha de alguém. E o que a faz ser assim é porque está muito bem escrita.
O narrador diz em certa altura:

« Ele estava a experimentar um bisturi eléctrico num bife de vaca. Subitamente, disse-me: "Rapara, Juanjo, cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa". Compreendi que a escrita, tal como o bisturi do meu pai, cicatrizava as feridas no mesmo momento em que as abria e descobri por que motivo eu era escritor.»

Mais adiante:

«Concebo a escrita como um trabalho manual. Cada frase é um circuito eléctrico. Quando se dá ao interruptor, a frase tem de acender. Um circuito não precisa de ser belo, mas sim eficaz. A sua beleza reside na sua eficácia.»

Não é um livro sobre teorias da escrita. Estas frases vêm a propósito mas são casuais. O que fica é o relato eficaz de uma experiência de vida.

Este livro vai ser objecto de conversa em mais uma "5ª COM LIVROS", sessão da comunidade de leitores da Biblioteca Municipal de Torres Vedras, em 15 de Abril próximo. Para fazer parte desta comunidade basta aparecer. Nem é preciso ler  o livro antes.

1 comentário:

Unknown disse...

Méon,

e vamos ler!!!!!!!!


Beijinho.