4.12.07

EU VI




Um amigo enviou-me este belíssimo texto. Poderia guardá-lo na gaveta, só para mim?




Eu vi crianças deitadas em modestos caixões. Eram pequeninas como eu era então. Condiscípulas da mesma escola estilo «Estado Novo», no topo da colina, a igrejinha ao pé. Sentavam-se ao fundo, ou à frente, de salas geladas, em secretárias duras como pedra, os tinteiros nos tampos, um pobre caderno em cima, os pezinhos frios, a cabeça a tombar com o sono, o frio, a fome. Eu via-as depois em féretros de pinho. Morriam com o sarampo, pneumonia, meningite, de qualquer coisa. Ia vê-las com os demais companheiros, e ficava absorto, sem compreender. O que era a morte? Não sabia.Não recordo o funeral do meu irmãozinho, de quatro anos, nem das brincadeiras comuns que ambos seguramente fazíamos. Guardo uma imagem vaga da minha mãe chorando silenciosamente, uma caminha, a dele, nela deitado, não me lembro. Apenas uma sentimento de injustiça e uma ideia nebulosa de justiça.




Vi o meu pai saindo porta fora, provavelmente com lágrimas nos olhos, disseram-me depois que estava preso muito longe, num forte com muros altos, castigado pelo comando da tropa, não soube porquê, mas senti uma profunda revolta, que foi a raiz, e a chama com que incendiei as minhas ideias.




Vi uma mulher, parecia jovem sob os farrapos, caída na rua, debaixo de um fardo de tábuas demasiado pesado para ela. Há quantas horas trabalhava nisso? que comera? Vi que ninguém a levantou, lhe deu a mão. Eu dei. E mais os vinte escudos que eram toda a minha fortuna.




Eu vi em terras africanas, longe da cidade, um grupo de homens brancos a tentar violar uns miúdos negros, fosse a gozar, fosse a sério, porque riam, gargalhavam, brutais, feios e porcos. E meteu-se em mim uma vontade de lhes bater, espancar, desfazer. Tirei o cinto mas não me atrevi. Era um miúdo. A chama que incendiava as minhas ideias ficou mais acesa.




Eu vi, passando na estrada, centenas, talvez milhares, de operários pedalando fracas bicicletas a caminho das fábricas, pedalando, pedalando, pela aurora, pelo crepusculo, com casacos mal talhados, de sarja pobre, sob a chuva, sob os ventos, com uma malga de caldo no estômago, talvez um bagaço. Ficou mais forte a minha chama. O que quer que fosse a justiça era assunto que me perseguia. Eu vi como muitos fugiam e os coelhos eram mais bravos.




Eu vi como a cobardia é coisa comum e a vergonha raramente a acompanha. Eu vi como um colega se torna delator, como um companheiro fura uma greve, como um estudante engraxa um mestre, como a traição se insinua como um réptil numa relação, como um homem ou mulher tem um preço, não porque trabalha, mas para que roube, engane, trepe mais uma tarimba, conquiste mais uns galões.




Eu vi um povo quase todo adormecido, estupidificado, silencioso, rude, maldoso, acobardado. Mas vi a valentia de camponeses do Alentejo, de operários de algumas fábricas. E a minha chama ficou a arder.




E vi-te. Um pedaço de céu a andar dançando abrindo as águas, uma onda suave e branda, um sopro de brisa numa manhã de Abril, um riso dando música a uma tarde morna de setembro. Meu amor.
janp

2 comentários:

avelaneiraflorida disse...

Méon, Meu Amigo,

e de repente...a memória traz-nos sinais,lugares e gente, vidas e momentos...

UM EXCELENTE TEXTO!!!!!
"BRIGADOS" pela partilha!!!!!

Anónimo disse...

Lindo poema! Não podemos ficar indiferentes. Obrigado.